2013-05-27

O "oitavo" sacramento

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Na missa de 25 de Maio, na Capela da Casa de Santa Marta o Papa Francisco reflectiu na sua homilia, através do Evangelho do dia, sobre a abertura e disponibilidade que devemos ter enquanto crentes, em particular os sacerdotes, enquanto facilitadores da fé. No Evangelho, Cristo chama a atenção dos discípulos para o facto de estes estarem a afastar as crianças que as pessoas levavam para o Senhor as abençoar. Jesus tocava em todos, a todos recebia e abraçava. E o Santo Padre até contou uma pequena história:

"Recordo que uma vez, saindo da cidade de Salta, no dia da Festa do Padroeiro, estava uma senhora que pedia a um padre uma bênção. Este disse-lhe que ela já tinha estado na missa e, então, explicou-lhe toda a teologia da bênção existente na missa. Ela respondeu: 'Muito obrigado'. O padre foi-se embora e ela dirigiu-se logo a outro padre para lhe pedir uma bênção, pois, ela tinha outra necessidade: a de ser tocada pelo Senhor. Esta é a fé que encontramos sempre e esta fé é suscitada pelo Espírito Santo. Nós devemos facilitá-la, fazê-la crescer, ajudá-la a crescer."
O Papa citou depois o episódio do cego de Jericó que gritava por Jesus. E as pessoas não queriam que ele gritasse pois ia contra o as normas, as regras, enfim... o protocolo. E recordou que quantas vezes quando numa paróquia as pessoas são acolhidas friamente, mesmo por leigos, em muitos casos quase tecnicamente, sem que suscite a quem acolhe uma reacção de alegria perante um irmão na fé que ali se apresenta para celebrar um baptismo, um matrimónio ou fazer uma inscrição na catequese. Apropriamo-nos um pouco do Senhor e os outros que sigam as nossas regras... O Santo Padre a terminar deu outro exemplo: "Pensai numa mãe-solteira que vai à Igreja, à paróquia, e diz ao secretário: 'Quero baptizar o meu menino'. E quem a acolhe diz-lhe: 'Não, tu não podes porque não estás casada'. Atentemos que esta rapariga, que teve a coragem de continuar com uma gravidez, o que é que encontra? Uma porta fechada. Isto não é zelo! Afasta as pessoas do Senhor! Não abre as portas! E assim quando nós seguimos este caminho e esta atitude, não estamos a servir as pessoas, o Povo de Deus. A Igreja instituiu sete sacramentos e nós com esta atitude instituímos o oitavo: o sacramento da 'alfândega pastoral'."

2013-05-25

Pensar a sociedade [1]

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Escrevo o primeiro artigo de uma série que um conjunto de professores da Universidade Católica Portuguesa, do Porto, irá escrever em cooperação como PÚBLICO. É oportuno, portanto, como responsável institucional, que deixe aqui uma nota introdutória, por conta desta aventura.
O momento é particularmente exigente para toda a sociedade portuguesa e nós não somos nem podemos ser indiferentes aos desafios desta hora, que é, como bem sabemos, muito difícil para a grande maioria dos portugueses.
Somos uma universidade sui generis, com uma matriz confessional, que nos ancora num dos mais relevantes veios culturais de Portugal, desde a sua fundação, com destaque para os valores do humanismo, da solidariedade e da justiça social. Esta tradição é particularmente útil num momento em que tudo parece tremer, a incerteza se agiganta e é preciso coragem e redobrada capacidade de inovação. Só inova quem tem raízes, só parte com liberdade frente a um futuro temível quem tem esperança e redobrada confiança. Nós vivemos com os olhos postos no presente, porque é aqui e hoje que é preciso dizer: presente! O amor, pedra angular do nosso modo de ser e estar, é para hoje, feito de obras. No futuro…será demasiado tarde!
Somos uma instituição cultural universitária, dedicada ao ensino e à investigação em áreas muito diversas, desde as artes à biotecnologia, da gestão à saúde, do direito à teologia, da bioética à educação e à psicologia. Temos um corpo docente experiente, dedicado e competente, maioritariamente jovem, que entende que deve partilhar com a comunidade aquilo que são as principais conquistas do saber em que participam. Não abdicamos, por isso, de inscrever, no espaço público, o nosso contributo para a redefinição de um país que precisa de mudar de rumo. Estamos disponíveis para trabalhar em comum, laborando nas fronteiras dos problemas mais difíceis. O ensimesmamento de pessoas, grupos, bairros, cidades, países, só pode conduzir ao desnorte, à violência e à guerra. Precisamos do outro e do diferente para crescermos, em comum e no bem comum.
Damos o nosso contributo apenas como quem faz o que tem a fazer, pois o que se nos pede no presente é fazermos, cada um a seu modo, todos livre e dignamente, o que temos de fazer, passo a passo, de modo decente e exigente. Precisamos de seguir caminhos novos, em concertação e com determinação; o pior que nos poderia acontecer seria repetirmos, nos próximos vinte anos, os erros que nos conduziram à situação atual. Precisamos de ser heróis, sim, mas na definição de Camus: gente comum que faz coisas extraordinárias por razões de decência.
Existe em Portugal, geralmente escondido dos media e pelos media, um fervilhar enorme de ideias, iniciativas e empreendimentos que estão a revelar-nos um país novo e bem mais capaz de nos conduzir a uma nova prosperidade, à nossa medida e devidamente sustentada na liberdade, na solidariedade e na justiça. É também por e para esse país que estaremos aqui todas as semanas no mundo digital.
Agradeço ao PÚBLICO a sua disponibilidade e… vamos à luta! | Joaquim Azevedo

2013-05-21

Sair de Portugal, uma oportunidade para Portugal?

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Todos conhecemos, uns mais e melhor que outros, o drama da emigração a que muitos milhares de portugueses estão a ser condenados. Estas vagas migratórias têm sido recorrentes na nossa história comum, envolvendo pais e avós de muitos dos jovens que hoje se vêem forçados a emigrar.
Mas esta nova vaga apresenta algumas caraterísticas novas: (i) ela dá-se num mundo muito mais globalizado e numa economia muito internacionalizada e interdependente; (ii) este mundo está impregnado de novas tecnologias e novos hábitos de comunicação e informação que o tornam muito mais pequeno; (iii) a geração que hoje emigra é muito mais qualificada, registando-se mesmo uma fuga de "cérebros", nos quais o país investiu e muito; (iv) esta geração não se desloca para os destinos históricos tradicionais, mas espalha-se por todo o mundo; (v) Portugal atravessa uma grave crise social e económica, com todos os problemas e desafios que isso mesmo coloca.
Estas características novas devem levar-nos a mudar os referenciais com que pensamos e perspectivamos esta nova vaga emigratória e os seus impactos. Portugal sempre foi maior do que o seu tamanho. As suas gentes e a sua cultura há muitos séculos que se espalharam pela diáspora. Hoje, a dispersão de muitos portugueses muito qualificados pelo mundo amplia a nossa dimensão, ou seja, somos ainda maiores e estamos ainda mais espalhados por todo o mundo. O maior drama desta nova vaga emigratória consiste em a pensarmos como sendo apenas mais uma ou apenas como mais um mal que nos está a acontecer, entre tantos que todos os dias nos invadem, como se o país e o mundo não tivessem mudado.
Uma boa parte dos negócios, hoje, está a ser fortemente influenciada pela economia aberta e globalizada. Inadvertidamente podemos estar a gerar uma nova rede global de portugueses presentes em todo o mundo, capazes de se ligarem entre si, aptos a ligarem o de lá com o de cá e o de cá com o de lá; ou seja, uma rede que qualquer programa governamental seria incapaz de promover, está aí potencialmente ativa. Faltam-nos, eu sei, vários requisitos para fazer funcionar esta rede, em nosso benefício, desde logo ela surge marcada por essa revolta com o país que obrigou os seus membros a emigrar. Mas uma intervenção subtil e inteligente, envolvendo sectores como a economia, o emprego, a ciência, a educação, os negócios estrangeiros e a diplomacia económica, com uma visão de médio e longe prazo, poderia transformar uma fraqueza numa enorme força.
Afinal, falta fazer o mais fácil. Pelo mundo já estamos, à custa do sacrifício de tantos, muitos dos melhores já partiram ou estão a partir, estamos a descobrir que os nossos recursos económicos internos são muito escassos e que não queremos regredir, já há casos de sucesso de ligações virtuosas entre os portugueses dispersos e, ao fim e ao resto, só estando por todo o mundo somos iguais a nós mesmos. A nossa dimensão real está alcançada, só falta fazer da dispersão uma força maior e ainda por cima o modelo económico está a jogar do nosso lado.
Coragem! | Joaquim Azevedo

2013-05-12




"Homens da Galileia, por que estais assim, de olhos fixos no Céu?"
Quantas vezes ficamos paralisados, a olhar para o Céu, como se aquilo que possuíamos, tivéssemos deixado de possuir; como se a súbita ausência não pudesse representar a caixa-de-ressonância onde a presença se torna mais pura; como se um certo sentimento de abandono nos condenasse ao entorpecimento das mãos e dos pés, à fossilização do coração.
Com efeito, vivemos como se o Evangelho de Cristo fosse um dado adquirido, algo que não exigisse mais do que tê-lo ouvido alguma vez.
Vivemos como se para 'ser cristão' nos bastasse uma 'área de conforto' devidamente delimitada, a condição apaziguada de quem vive bem sem questionar o espaço de que dispõe para situar o seu processo de conversão pessoal ou um sentido para a missão de anunciar, testemunhar o Evangelho.
Vivemos como se 'ser Igreja' nos suscitasse o ensimesmamento auto-indulgente e autocomprazido das sociedades secretas ou dos clubes privados… Ou vivemos anestesiados com a pretensão de 'Cristandade', narcotizados com patéticas vaidades alimentadas pela promiscuidade entre a Igreja e o Estado, com concordatas e 'concordatices' em que o Evangelho é sistematicamente preterido em função das relações de poder e dos braços-de-ferro da 'realpolitik'. Vivemos entorpecidos pelas estatísticas, pela síndrome dos 99%; ou com a tentação de fazer Igreja à parte.
Mas, neste domingo da Ascensão, percebemos que essa missão de anunciar o Evangelho, em qualquer sítio e situação, é identitária, diz quem somos, explica como vivemos, testemunha o conteúdo da nossa fé e a verdade do nosso amor, e revela o modo como espera-mos… e é a nossa esperança que nos permite anunciar o Evangelho como se a nossa vida, enquanto cristãos, dependesse profundamente dessa partilha. Anunciamos o Evangelho, porque o Evangelho existe em nós na proporção e na medida em que o anunciamos; o Evangelho redime as nossas vidas na proporção e na medida em que o testemunhamos; o Evangelho resulta no Reino de Deus na proporção e na medida em que o partilhamos.
Não há segredos… se não reconhecemos o Evangelho em nós, é porque não o anunciamos; se não permitimos que o Evangelho redi-ma as nossas vidas, é porque não o testemunhamos; se o nosso mundo não é ainda o Reino de Deus, é porque ainda não conseguimos [ainda não soubemos] partilhá-lo.
Recordo uma reflexão de Paul Tillich: "Não é fácil pregar cada domingo sem se elevar a pretensão de possuir Deus e de poder dispor dele. Não é fácil pregar Deus às crianças e aos pagãos, aos cépticos e aos ateus, e ter de lhes explicar, ao mesmo tempo, que nós próprios não possuímos Deus, mas que o esperamos. Eu estou convencido de que a resistência ao cristianismo vem em grande parte do facto dos cristãos, abertamente ou não, erguerem a pretensão de possuir Deus e terem assim perdido o elemento de expectativa."
"Este Jesus que, de junto de vós, vos foi arrebatado, voltará da mesma maneira que o vistes partir para o Céu", lemos nos Atos dos Apóstolos. É isso… é por isso que esperamos e é por isso que sabemos e sentimos que faz sentido esperá-lo… esperá-lo sem a ilusão de possuí-lo; esperá-lo porque Deus é de esperar, não é de possuir; esperá-lo porque nós somos de esperar, não somos de possuir.
E é por isso que nos reunimos domingo-a-domingo, para guardar o futuro e porque o nosso coração espera como se batesse e bate como se esperasse... a vinda de Cristo. | José Rui Teixeira

2013-05-10

O Segredo de Fátima

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À medida que o tempo passa, acredito mais no Segredo de Fátima. Nesse Segredo que desassossega, que nos arranca de casa, dos livros, da cidade e nos lança, anualmente, para a imensidão das estradas. Eu acredito num 'não sei quê' que esse Segredo derrama em nós: uma porção de confiança, de abandono e de aventura. Uma vontade de tornar a vida mais que tudo verdadeira. De tornar generosos os projectos e fecundos os laços que nos ligam aos outros. De tornar absoluta a nossa sempre frágil Esperança.
À medida que o tempo passa, vou conhecendo pessoas cujo tesouro interior foi descoberto, ampliado nos caminhos de Fátima. Pessoas que contam histórias simples, misturadas com sorrisos e lágrimas. Histórias de um Encontro tão parecido ao que teve uma rapariga da Judeia, de nome Maria.
Que têm os peregrinos de Fátima? Têm o vento por asas e a lonjura por canto. Têm a conversão por caminho e a prece ardente por mapa. São filhos de uma promessa que se cumpre dentro da vida.
Gosto dessa frase de Vitorino Nemésio que diz: "em Fátima, a Humanidade inteira passou a valer mais". Gosto, porque nos caminhos longos, imprevistos e profundos de uma peregrinação isso nos é ensinado como uma evidência humilde e apaixonante. | José Tolentino Mendonça

2013-05-07

Opéra, Paris [1890]


No dia 26 de Outubro de 1890, António Nobre chega a Paris e instala-se no n.º 2 da Rue Racine; no dia 1 de Dezembro muda-se para o n.º 12 da Rue de la Sorbonne; no dia 28 de Fevereiro de 1891 muda-se novamente, desta vez para o n.º 41 da Rua de Écoles e, no dia 1 de Novembro do mesmo ano, instala-se no Boulevard St. Michel. Em 1892 vive no n.º 21 da Rue Valette. Entre Novembro de 1893 e Janeiro de 1895 [quando regressa definitivamente a Portugal], vive novamente na Rue de la Sorbonne [n.º 18], dois dias na Rue de Cryar [n.º 16] e, finalmente, na Rue des Écoles [n.º 41].
A Torre Eiffel acabara de ser construída quando, em 1890, António Nobre chega a Paris. Durante esses anos, o poeta perde o irmão [Júlio] e o pai, regressa algumas vezes a Portugal, aparecem os primeiros sintomas da tuberculose, surgem dificuldades económicas e licencia-se em Direito na Sorbonne. No dia 21 de Abril de 1892, o livreiro Léon Vanier [editor de Verlaine, Mallarmé ou Rimbaud], imprime 200 exemplares do , um dos mais importantes documentos da História da Literatura Portuguesa, um livro que não se descreve, nem se explica sem que um dia tenhamos sentido saudades de Portugal, enquanto deambulávamos [desterrados] pelas ruas do Quartier Latin.
Oito anos depois da edição do , António Nobre morre no Porto, vítima de tuberculose… ou dessa enfermidade [poética] que não é bem tristeza, nem é só saudade e que tem a ver com o facto de certos poetas serem [ainda] aqueles seres humanos que existem mais desapaixonadamente, porque por instantes conheceram uma beleza incontida e inefável, um milagre... e parece-lhes trágico ter que suportar o resto da vida.

António Nobre [1889]


Não foi há muito tempo que, descendo de Montmartre para a Opéra, passei perto da Rue de Trévise, em Paris. Lembrei-me de um episódio de 1891: Sampaio Bruno tinha acabado de chegar a Paris [exilado do 31 de Janeiro]. Lêem-se estas palavras no prefácio de Despedidas [livro póstumo de António Nobre, publicado no Porto, em 1902]: "Na escura rua de Trévise me procurou, abandonando por horas a sua preferida margem esquerda, de que lhe era tão penoso afastar-se, António Nobre, uma tarde em que eu sofria cruelmente. Esta visita sensibilizou-me; como me encantou a conversação do poeta, pelo tom subtil da melindrosa reserva na consolação, a um tempo caridosa e primorosa, d'um'alma em carne viva, como a minha por então andava."
António Nobre, nessa tarde de 1891, abandona o [seu] Quartier Latin e visita Sampaio Bruno, no Quartier du Faubourg-Montmartre. Na Rue de Trévise, em Paris, encontraram-se dois dos mais importantes intelectuais portugueses do século XIX: o filósofo e o poeta. Por um instante, "o spleen de Paris" foi mais português do que nunca… Baudelaire já dormia no Cemitério de Montparnasse há 24 anos e seria preciso esperar 25 anos para que Mário de Sá-Carneiro pusesse fim à sua vida no Hôtel de Nice, em Montmartre.
Talvez não seja importante… mas para mim o encontro entre Sampaio Bruno e António Nobre, em Paris, é um daqueles momentos muito raros, com uma beleza secreta, escondida, desadornada. As palavras de Sampaio Bruno são como uma melopeia, guardam essa tristeza [quase] redentora que reconhecemos naquelas "canções que as mães dedicam aos filhos doentes", como se lê num poema do José Tolentino Mendonça. | José Rui Teixeira

2013-05-05




Conheci agora um pouco melhor Dalila Pereira da Costa [1918-2012], com a publicação e apresentação pública do livro de Joaquim da Silva Teixeira, «A experiência mística na obra de Dalila Pereira da Costa», editado pela Cosmorama Edições e ontem realizada na Católica . Porto. Li boa parte do livro e assisti às intervenções do autor, do Prof. Arnaldo de Pinho e do Doutor Ângelo Alves. Conheci Dalila na sua casa da 5 de Outubro, uma mulher quase invisível, pequena e luminosa. Mas agora pude reconhecê-la, esse gesto bem mais humano do que simplesmente conhecer.
Uma mística no meio dos supermercados! Uma discretíssima luz na noite, uma presença da graça.
Diz ela, no seu «A força do mundo», sobre as suas experiências místicas: "o que vejo, é que tudo depende desta força, a graça. É ela que tudo dá e mesmo que tudo condiciona, tudo permite. Age como força que vai penetrando, ultrapassando todas as nossas camadas, anulando-as, até chegar àquela primeira, o nosso último ponto, o mais interior [...]. Ela é uma força e nos seus primeiros instantes como um fogo que vem desapossar-nos, libertar-nos do nosso ser terrestre, realizando essa morte na voda. Por ela é uma força de identidade. Anula em nós tudo o que em nós é diferente, outro que Ele. Para que seja possível a identificação última, a iluminação, que é uma divinização. Deus é sempre o nosso fim e o caminho para Ele mesmo. Unicamente por Ele se chega a Ele."
Segundo S. João da Cruz, a mística é "sabedoria de Deus, secreta e oculta", sempre difícl de pronunciar e de comunicar. Mas Dalila Pereira da Costa esforçou-se e agigantou-se nesse esforço de comunicar a sua relação íntima com Deus. Para nosso maior bem e para glória de Deus.
Vale a pena ler este livro neste tempo preenchido quase por completo por cifrões, equipamentos, estatísticas e consumos. E já agora, um ou outro de Dalila, que escreveu cerca de quarenta pequenos volumes. A biblioteca da Católica . Porto tem os seus livros, onde podem ser requesitados. | Joaquim Azevedo

2013-04-29

No dia 4 de Maio, celebra-se no Porto os 100 anos do jornal "A Ordem". Haverá uma concelebração eucarística às 15h, na Igreja de Santo Ildefonso, e uma Sessão Solene às 17h., na Associação Católica do Porto [Rua Passos Manuel, 54]. Nesta sessão, presidida pelo Sr. D. Manuel Clemente, usará da palavra o P. José Maria Pacheco Gonçalves [Rádio Vaticano] sobre o tema: "Igreja e Comunicação, ontem e hoje: exigências, dificuldades, desafios". A entrada é livre.

2013-04-18

Eis o Homem . 2013

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2013-03-26

Rezem por mim!

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"Não te esqueças dos pobres!" E assim… nasceu Francisco, diz-nos Jorge Mario Bergoglio. Mas podia não ser. Aquela frase podia ter ficado retida numa curva da árvore do bem e do mal ou suspensa no dedo do Criador, pendurada na Capela Sistina, ou até ter ficado perdida num bairro dos arredores de Buenos Aires. Também poderia ter nascido Adriano ou Clemente, mas não... foi assim que S. Francisco regressou ao furacão do mundo, no século XXI, porque "quero uma Igreja de pobres e para os pobres". Há uma nova centralidade, na simplicidade, na humildade, no serviço: Jesus Cristo. Se não o confessamos, dizia o novo Papa, podemos ser padres e bispos e cardeais, mas seremos apenas uma "piedosa ONG", não a Igreja de Jesus Cristo. Sem a Sua cruz, o que é a nossa fé?
Já havia tempo que este rosto da esperança cristã andava às cabeçadas contra a casca do ovo, a ver se ela fendia; nós sabemos (os historiadores talvez o percebam com mais sensibilidade!) que as cascas acabam por partir, mesmo as grossas... mas não sabemos quando, às vezes demora um século ou até dois ou seis! E nós somos muito impacientes, tão curta é a nossa vida! Mas hoje, entre outras coisas, concluímos que todas as orações do mundo ecoam em Deus, num magnífico silêncio multicolor! De facto, nem um só cabelo da nossa cabeça está por contar e... como é fraca a nossa fé! Acreditar, acreditamos, mas lá vamos vivendo como se isso pouco contasse aos olhos e aos ouvidos de Deus, uma fé daquelas que "vai dando prós gastos", mas não move montanhas; que acredita demasiado na pessoa que acredita e pouco na pessoa de Jesus Cristo que acredita em nós. Valeu a pena ter esperado tantos anos, vai valer a pena continuar a esperar e a rezar e a ter fé e esperança.
Já tudo mudou e nada está ainda mudado!
Este novo Bispo de Roma, como gosta de se apresentar o Papa Francisco, tem Deus consigo, despertou uma boa parte do mundo para a Igreja e para uma outra forma de ver Cristo e os cristãos, isso é muito bom, reabre muitas portas. Este mundo em crise, a braços com uma profunda convulsão cultural, que está a deixar os seres humanos angustiados e sequiosos, e sem poço de Jacob à vista, precisa de sinais e de novos rumos. Mas, para já, isto é algo superficial e muito rápido, está inscrito na lógica dos media, pode ser mero consumo mediático, mesmo sendo de água fresca.
Temos de continuar a rezar, muito e com fé! Ele há uma poderosa estrutura de poder, uma Cúria e um IOR para vencer, ele há um ambiente cultural hostil à Igreja e muito bem organizado, que não poupará Franciscos como não poupou outros Papas quando eles tiverem de falar do aborto ou do relativismo moral, ele há muito marasmo, preguiça, indolência nas mentes dos próprios cristãos, ele há a gestão dos processos de mudança à escola global, ele há...
Porque é que o Papa Francisco termina todas as suas intervenções, pequenas ou longas, por pedir: "rezem por mim"? | Joaquim Azevedo

2013-03-24

Domingo de Ramos

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Eis que celebramos o Domingo de Ramos. Quantas vezes já lemos ou escutámos a narrativa da Paixão? Poderíamos reproduzi-la de memória, como quem conta uma história, sem comprometer a sua inteligibilidade. E ainda assim, se a lemos ou escutamos com o sentido de quem se deixa transformar pela Palavra, é como se a lêssemos ou escutássemos pela primeira vez.
Por estes dias, celebramos a Páscoa. Não a celebramos como quem está saudosamente amarrado ao passado, nem como quem recalca memórias… Celebramos a Páscoa como quem presentifica a salvação. Trata-se de um paradoxo que só a fé resolve: presentificar a salvação implica que já tenhamos sido salvos; mas, se não a presentificamos, não seremos salvos. E como não seremos salvos se já fomos salvos? Com efeito, dizer que já fomos salvos, implica aceitarmos que estamos em processo de salvação, ou seja: que a salvação é, em termos escatológicos, esse "já agora" e "ainda não", algo que nos foi dado, mas que não é um dado adquirido; algo que nos foi dado para que o fizéssemos, para que o presentificássemos. Por isso somos peregrinos, estamos a caminho…
Este processo de salvação implica que queiramos ser salvos. E eu… quero ser salvo? O que é que em mim carece de salvação? A minha vida reflete essa necessidade de redenção? Percebo esse processo de redenção pessoal como processo de conversão?
Enquanto eu não for profundamente honesto e consequente com estas questões que coloco a mim próprio, dificilmente a minha vida representará esse caminho de configuração com Cristo, esse processo de conversão permanente, essa consciência de que estou a ser salvo. Podemos continuar a celebrar aqui ou noutro sítio qualquer, durante dez ou vinte anos, com mais ou menos sinais exteriores… mas tudo não passará de uma mão cheia de nada.

No fundo, é isso que representa a entrada de Jesus em Jerusalém. A decisão de celebrar a Páscoa com os discípulos em Jerusalém implica uma decisão: Jesus decide "subir" a Jerusalém. E a decisão implica uma encruzilhada: Jesus situa-se numa encruzilhada, que é mais do que a interseção de dois caminhos. Encruzilhada é a situação de um Homem sobre dois caminhos que se cruzam. É na encruzilhada que o Homem – o Filho do Homem – se interroga, uma última vez, sobre qual o caminho a seguir; é na encruzilhada que aparece o "diabo", enquanto metáfora daquilo que nos divide, que nos desassossega… é na encruzilhada que nos ocorre que pode ser outro o caminho. Mas Jesus endurece o rosto e "sobe" a Jerusalém. Jesus é consequente. Não era preciso ser o Filho de Deus para perceber a armadilha, a conspiração… bastava ser minimamente inteligente: naquele contexto, entrar em Jerusalém representava um caminho sem retorno.
Mas Jesus não é um suicida nem faz a apologia do martírio. Jesus é, simplesmente, consequente. Talvez por isso tenhamos tantas dificuldades em compreendê-lo. Fazemos uma expressão piedosa enquanto escutamos a narrativa da Paixão, mas não o compreendemos. Cristo é desconcertante, na medida em que nos desconcerta a sua alegria e simplicidade, a sua coragem e desassombro. Habituamo-nos a olhar Jesus em termos redutoramente estereotipados e, assim, nem sequer é necessário qualquer esforço no sentido de compreendê-lo.
Quando Jesus entra em Jerusalém, está em processo de conversão… também ele. Em processo de conversão e em processo de redenção. Soa a heresia, mas é ele que trilha o caminho da conversão e da redenção… por isso parte para o deserto, por isso endurece o rosto antes de "subir" para Jerusalém, por isso opta por entrar montado num jumento, numa espécie de desconstrução do estereótipo da entrada triunfante do "messias esperado": não é só o jumento, é a turbamulta, a populaça, são os murmuradores do costume. E ainda assim, o que ali acontece é estranhamente bonito, autêntico… Jesus põe-se à prova, desafia-se… decide. E decidir implica ser livre. E ser livre implica poder ter recusado entrar em Jerusalém. E se não tivesse entrado em Jerusalém, como poderia ter entrado na minha vida? E eu, na minha fragilidade, como poderia perceber que a minha vida faz sentido à luz da sua decisão?
Talvez eu não tenha percebido a necessidade do processo de conversão. Talvez não tenha percebido a necessidade do processo de redenção. É mesmo possível que eu não tenha percebido, simplesmente, a necessidade de salvação. Mas ainda tenho uma oportunidade: a oportunidade de perceber que quando Jesus decide livremente entrar em Jerusalém, é na minha vida que ele decide entrar… Resta saber se eu serei capaz de acolhê-lo. | José Rui Teixeira

2013-03-07

III Encontro de Artistas . Porto

2013-02-05

© Omar Cleunam



O valor de uma coisa 
tem a ver com a sua utilidade? E se falássemos um pouco, entre nós, 
sobre a utilidade do inútil? E também da 
inutilidade de tanta coisa supostamente tão útil?
 Caminhamos para um deserto do mundo espiritual,
 sob o pretexto da acumulação de riquezas e da
 maximização do lucro a qualquer preço. Vivemos num
 tempo vergastado pela obsessão pelo dinheiro e pelo ter. 
É nos momentos de maior crise económica que urge falar da
 urgente sede do inútil, em todo o lado visível, quando por todo o
 lado nos fazem crer que viver é ser produtivo, competitivo e consumidor,
 além de contribuinte. Ionesco disse que "se não se compreende a utilidade
 do inútil, a inutilidade do útil, não se compreende a arte". E continua: a
 poesia, a necessidade de imaginar, de criar, é tão fundamental como a de respirar. 
Adentrar-se no "reino subtil" do inútil é saborear a utilidade da vida, da criação,
do amor, do desejo, de um beijo; é a arte, a literatura e a liberdade, é a compaixão, a solidariedade e a
 gratuitidade de tantos gestos, é a bondade e a beleza, é o que realmente preserva a memória
 da humanidade do humano. Podemos ter duas opções, segundo Italo Calvino. Uma consiste em
 aceitar fazer parte do (deste) inferno sem o querer sequer ver. A outra, mais arriscada, consiste em procurar, no meio do inferno, o que não é o inferno e fazer isso durar e dar-lhe um lugar. Porque não criar obras inúteis, redigir notícias inúteis, emitir telejornais que não sirvam para nada? Porque não debater publicamente assuntos inúteis? Se não conhecemos a importância do inútil, como poderemos saber o que é útil?Que tal falarmos sobre isto mesmo? | JA

2013-02-02

© Omar Cleunam



Marc Augé, em «Les nouvelles peurs», fala dos medos que crescem na Europa e no mundo. Medos que se agigantam, medos com os quais é difícil viver e saber viver, medos pesados, do futuro, do presente, do outro. Agiganta-se o medo dos outros, dos diferentes, dos iguais. O equilíbrio das sociedades humanas está ameaçado porque existe um mal-estar generalizado. Os governos transformam-se em "administradores do medo" [P. Virilio] e os governados em pessoas com medo, fechadas sobre si mesmas, isoladas, cada vez menos disponíveis para criar relação.
O espaço público atrofia-se. A imediatez substitui qualquer mediação, diz M. Augé. Comunica-se tudo e a todo o tempo, a comunicação torna o ambiente opressivo, irrespirável, mas o que se comunica na comunicação? O desastroso, os milhares de pontos de vista desconexos, a incapacidade de nos entendermos, o imediato. O tempo real substitui o espaço real, diz P. Virilio, e o simbólico foge do espaço social, um espaço de fragilidade, sem laços.
Os excluídos, esses que deitamos fora pela janela da casa e que crescem a toda a hora, um dia voltarão a entrar pela porta, para nos dizer com violência o que não quisemos ouvir em sussurro.
Neste tempo, o que é a política? Será que apenas nos podemos resignar e dar espaço aos cínicos? Será que não poderá haver mais espaço público para o encontro, para a geração de laço social, para além de uns "bouquets primavera" que governos, empresas, instituições e pessoas colocam na sua casa: uns belos "códigos de conduta", uns bonitos princípios de "responsabilidade social", uma muito airosa declinação da ética em tudo, em todos e a toda a hora?
Não será a "indignação" uma manifestação do medo que nos consome os dias e as horas e nos rouba o presente, tanto ou mais do que o futuro?
Os medos são agora explorados à exaustão pelos media e o real, os casos concretos e as pessoas concretas quase não existem, são irreais, uma ficção, fazem parte do "empilhamento arbitrário de casos concretos", que impregnam a realidade de "uma atmosfera realmente opressora". O real só regressa quando regressar a relação. Aqui e agora. | JA

2013-01-17

2.º Ciclo de Conferências ECCE HOMO

2012-12-24

Natal, e não Dezembro


Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.


David Mourão-Ferreira

2012-12-23

O regresso a um país desconhecido

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Talvez tenha chegado o momento de empreendermos um renovado e possivelmente longo processo de emigração. Desta vez, não já para o Brasil nem para França, mas para um novo destino, porventura bem mais longínquo e inacessível: Portugal.
De facto, o que hoje ocorre de mais significativo e profundo em Portugal – apesar de continuarmos envoltos no nevoeiro desta crise – é o choque da realidade, é a “descoberta” ou a “revelação” do país que estava simplesmente empurrado para debaixo do tapete. É como se a imagem impressa no papel branco de fotografia, invisível enquanto não mergulha no ácido, estivesse agora a surgir lentamente sob os nossos olhos espantados, no momento exatamente em que Portugal está a ficar submerso num líquido algo viscoso e corrosivo.
Mas, "depois deste curto intervalo", Portugal aí está de regresso:
Somos um país pobre, com poucos recursos materiais;
Somos uma sociedade ainda muito dependente do Estado (porque este gera e obsessivamente alimenta na sua quase completa dependência), um país tristemente ofuscado na dependência que gera dependência;
Somos um país que apenas começou a submergir da ignorância e do obscurantismo cultural, que impregnou secularmente os tecidos sociais e culturais do poder e da submissão;
Somos um país pequeno, muito periférico e com muito pouca relevância no mercado mundial globalizada e financeiro;
Somos um país que realizou, no pós-25 de Abril, investimentos infraestruturais gigantescos e grande parte desnecessários, mas que aí estão;
Somos isto e muito mais: uma belíssima fatia de terra, banhada pelo sol e debruçada sobre o mar, uma cultura viva e encolhida na garganta de tantas vozes e no rumor de tantas súplicas, um espírito de grande abertura ao mundo, com firme vontade de partir, cais de partidas sem fim, um país que pode vir a ter um serviço nacional de saúde exemplar, que conta com um serviço de educação em franco progresso, que se orgulha de uma língua que as suas gentes espalharam pelo mundo, fazendo dele um mundo humanamente muito melhor, ...
Os portugueses, esta nova geração emigrante no seu próprio país, estão triplamente desenraizados: (i) diante da representação omnipresente de um passado heróico, em que fomos os maiores do mundo, está a realidade de um Portugal inscrito em várias listas negras, cheio de dívidas e a carregar "castigos" internacionais por se ter pedido mais do que podia pagar; (ii) diante de um Portugal fantástico, o dos últimos quarenta anos, onde o dinheiro não faltava, onde se fantasiou e se executaram incalculáveis devaneios, estádios que não servem para nada, auto-estradas onde quase ninguém circula e equipamentos públicos que servem para muito pouco; (iii) diante de um presente dramático, em que redescobrimos um Portugal impossível, seja porque é impossível regressar aos últimos quarenta anos, seja porque não se vislumbra ao que seja possível regressar ou quais sejam as vias para atualmente nos regenerarmos. Este é um momento de grande dor e sofrimento para a generalidade dos portugueses, porque estamos obrigados, num período curto, para lá do desemprego, da pobreza e da miséria, já de si dramáticos, a fazer um luto bastante pesado sobre o nosso próprio país.
Vagueamos, atordoados, no nosso próprio país, pisando a nossa própria terra: não percebemos a linguagem que agora enche o quotidiano, desconhecemos os hábitos e procedimentos que são agora recomendados, as palavras-chave mudaram de sentido ou são mesmo novas. Tudo isto é estranho, muito estranho, tão estranho que lhe somos estrangeiros: frugalidade, poupança, humildade, simplicidade, busca do essencial, "amor como critério de gestão", sustentabilidade, lentidão, silêncio, E agora é preciso aprender quase tudo de novo. Sim, esse é o grande desafio e o grande problema. As questões de fundo prendem-se com a possibilidade de os portugueses, emigrantes na sua própria terra, serem capazes de fazer o luto deste passado e deste tipo de presente e de se envolverem na construção de um Portugal possível, ao alcance da nossa mão, por nós controlado, emanação da nossa cidadania e da nossa real participação social e política.
De outro modo, o vazio vai desgastar as energias sobrantes, o sem sentido vai preencher toda a sede de sentido, a errância vai ser o caminho quotidiano. E que mais deseja o estrangeiro em terra alheia? Inserir-se o melhor possível localmente, adoptando as mais variadas estratégias de sobrevivência, que passam tantas vezes por fechar-se numa concha e, logo que possível, regressar à sua terra, às suas raízes. Regresso que, neste caso, é uma impossibilidade real (pois ninguém [??] quer voltar a um passado que gerou um tão angustiante presente). Resta, pois, a revolta e a adopção individualizada de modelos de sobrevivência.
Por isso, é tão decisivo, porque profundamente arreigado na cultura comum, o momento que vivemos. Fazer o luto (o desmoronamento) de certos valores, hábitos, procedimentos, expectativas e desejos não vai ser fácil, mas pode resultar consideravelmente de uma imposição externa; encontrar e adoptar (a reconstrução) novos valores, hábitos, procedimentos, referências e expectativas, isso não se imporá de fora para dentro, mas só pode resultar de uma expiração, de dentro para fora, no que será igualmente uma autêntica expiação.
Num tempo destes, o mais fácil será fazer do populismo e da demagogia as principais forças motrizes de canalização, no espaço público, dessa revolta e dessa iminente impossibilidade de regresso. Agitar o vento, para pessoas sem raízes, é um meio eficaz de as levar atrás de qualquer coisa, com destaque para a corrida atrás tanto de um passado sempre possível de ser assinalado como espectacular, como de um futuro completamente utópico e perfeito. As pessoas estão a precisar, e depressa, de se agarrar a algo de muito concreto, por mais inverosímil que lhes pareça. Acreditar, confiar, ser parte.
Em alternativa, ou seja, a via crucis, implica sairmos de casa e irmos conversar construtivamente uns com os outros, o que não é nada fácil; implica esconjurar o medo pela via do diálogo, pela participação cívica e política, pela lenta e humilde edificação, com as nossas próprias mãos, de um futuro possível, devidamente por nós ponderado, capaz de integrar as várias gerações vivas; requer disponibilidade para acolher o outro, o diferente, e para a construção solidária de dias melhores, com compromissos locais muito concretos; implica tecer a filigrana da ligação, da entreajuda, da rede, da comunidade, para podermos alcançar em comum dias melhores; subentende a verdade, a esperança sustentada na verdade e o estabelecimento de novos horizontes, novas prioridades e metas, longe de qualquer fantasia, o que não é fácil, sobretudo porque os nossos actuais líderes estão porventura mais desenraizados ainda do que o comum dos cidadãos, pois vivem no mesmo mundo, com os mesmos problemas, com a diferença que são chamados a liderar o processo de regresso a um país desconhecido que, como nós, desconhecem, afastados de qualquer profunda e humana esperança.
Este é um tempo extraordinário, que já colocou em cima da mesa desafios extraordinários, que requerem ponderações e decisões extraordinárias. E o mais extraordinário é isto: cada um tem de mudar de vida! E isto não se passa na casa do vizinho, não dá para fazermos de conta, pois, cada uma e cada um, somos agora emigrantes na nossa própria terra. Queremos regressar a que futuro? Que valor queremos passar a gerar, em cima de que valores culturais sociais?
Uma coisa é certa: quem hoje semeia entre lágrimas, há de recolher as espigas por entre canções de alegria. | JA

2012-12-22

Feliz Natal ...

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Georges de La Tour [1593-1652] . A Natividade [1645-1648]



Estamos na periferia do Natal. Somos na periferia do Natal. No início do Advento, escrevi que estamos [na condição de cristãos] em Advento… somos em Advento, somos Advento. Hoje sinto que estamos [que somos] na periferia do Natal de Cristo, estamos a ganhar proximidade, uma proximidade íntima com a memória do presépio e com a mais luminosa esperança, o coração da nossa esperança: a vinda de Cristo.
Não podemos entender este contexto [a própria orgânica do ano litúrgico] sem esta consciência de que fazemos memória ['fazemos' no sentido de 'celebramos'] enquanto 'guardamos o futuro'. E isso só é possível com a inteligência da Fé, com a ciência da Esperança, com a poética do Amor, porque o que vivemos, o que experimentamos, o que somos… é 'já agora' e 'ainda não'. Não se trata de uma espécie de esquizofrenia, nem desassossego existencialista ou inquietude pós-moderna… é Escatologia: a consciência histórica do passado é estrutural [o Caminho que percorremos], o futuro é a nossa vocação [já disse que a Igreja 'não tem' futuro… a Igreja 'é' o futuro], mas o presente é a nossa condição, o tempo da nossa santificação, um presente em sentido absoluto, aqui e agora.
Por isso, é verdade que carregamos as nossas angústias, os nossos medos, as nossas apreensões, os nossos desassossegos… afinal nada do que é humano nos é alheio. Mas é HOJE que eu colho a esperança que ontem semeei, é HOJE que semeio a esperança que amanhã colherei; é HOJE que eu sou, que me santifico e santifico o meu contexto existencial, é HOJE que me converto, é HOJE que digo o 'Pater' como se fosse a primeira vez, como se fosse a última vez, fundamentalmente como se fosse a única vez. Isto é tão fácil e eu bem sei que é difícil… tão fácil e tão difícil como o Sermão da Montanha, como o Evangelho… mas quem, entre nós, já desistiu do Evangelho? Quem, entre nós, já desistiu do Sermão da Montanha? Não basta ler [no caso de termos lido…], não basta compreender [no caso de termos compreendido…], é essencial viver, assumir no quotidiano, concretizar no dia-a-dia, experimentar nas relações, nas rotinas… Quem, entre nós, já desistiu de Cristo?

Dizia que o Natal implica uma proximidade íntima com o presépio. O que é que isso significa? Não somos saudosistas nem assumimos o ano litúrgico como uma espécie de eterno retorno do mesmo; por isso, o presépio não é para nós um motivo de comprazimento em torno de bonequinhos. O presépio e a proximidade íntima com o seu contexto evangélico, permite-nos [de um modo tão poético…] perceber a natureza impressiva e desconcertante do Amor de Deus; mas o segredo não está apenas no presépio… está na proximidade, esta na intimidade e está, fundamentalmente, no Amor de Deus.
Quando nos aproximamos intimamente do presépio, estamos a 'fazer memória', e estamos a 'guardar o futuro'… mas o segredo não se esconde nos verbos 'fazer' ou 'guardar', mas no presente do indicativo de 'estar': 'estamos'… Quando nos aproximamos intimamente do presépio, esquecemos o folclore, esquecemos os excessos desse natal que nos roubou o Natal, esquecemos o consumo, uma certa embriaguez ou loucura que só a crise [ou nem a crise…] consegue refrear. Quando nos aproximamos intimamente do presépio, percebemos que o natal não precisa da família [reunida]… a família é que precisa do Natal para ser Família. Quando nos aproximamos intimamente do presépio, percebemos como a palavra 'consoada' se tornou quase boçal… esse natal do bacalhau cozido e dos doces que nos adoçam a boca azeda, azedada pela 'religião dos mortos', pela desolação das nossas memórias, pelos nossos ressentimentos.

E se nos aproximarmos intimamente do presépio, pode ser que percebamos o Sermão da Montanha como a nossa Regra de Vida; pode ser que percebamos CRISTO como Cristo em nós e nós n’Ele, aqui e agora, tão intimamente próximos quanto nos permite o presépio. | JRT

2012-12-20

EIS O HOMEM 12/13

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2012-12-12

Compaixão

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© Omar Cleunam


Na História do rei transparente, de Rosa Montero, surge este diálogo comovente e profundo:

"- Continuas a escrever o teu livro de palavras?
A pergunta de Nyneve surpreende-me. Endireito-me e olho para ela. A minha amiga, que também está a trabalhar na horta, descansa apoiada na enxada.
- Sim, porquê?
- Porque te queria oferecer uma palavra. A melhor de todas.
- Ah, sim? Qual é?
- Compaixão. Que, como sabes, é a capacidade de nos colocarmos na pele do próximo e de com ele sentir o que ele sente.
- Sim, agrada-me. Mas porque é que me dizes que é a melhor?
- Porque é a única das grandes palavras em nome da qual não ferimos, não torturamos, não prendemos e não matamos... Pelo contrário, evita tudo isso. Há outras palavras muito belas: amor, liberdade, honra, justiça,... Mas todas elas, todas, podem ser manipuladas, podem ser utilizadas como armas de arremesso e causar vítimas. Por amor ao seu Deus, os cruzados acendem piras e, por um amor aberrante, os amantes ciumentos matam as suas amadas. Os nobres maltratam e abusam barbaramente dos seus servos em nome de uma hipotética honra; a liberdade de uns pode significar a prisão e morte para outros e, quanto à justiça, todos julgam tê-la do seu lado, mesmo os tiranos mais cruéis. Só a compaixão impede estes excessos; é uma ideia que não pode impor-se aos outros a ferro e fogo, porque nos obriga a fazer justamente o contrário. Obriga-nos a aproximarmo-nos dos outros, a sentir o que sentem e a compreendê-los…Lembra-te desta palavra, minha Leola. E, quando te lembrares, pensa também um pouco em mim."