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Talvez tenha chegado o momento de empreendermos um renovado e possivelmente longo processo de emigração. Desta vez, não já para o Brasil nem para França, mas para um novo destino, porventura bem mais longínquo e inacessível: Portugal.
De facto, o que hoje ocorre de mais significativo e profundo em Portugal – apesar de continuarmos envoltos no nevoeiro desta crise – é o choque da realidade, é a “descoberta” ou a “revelação” do país que estava simplesmente empurrado para debaixo do tapete. É como se a imagem impressa no papel branco de fotografia, invisível enquanto não mergulha no ácido, estivesse agora a surgir lentamente sob os nossos olhos espantados, no momento exatamente em que Portugal está a ficar submerso num líquido algo viscoso e corrosivo.
Mas, "depois deste curto intervalo", Portugal aí está de regresso:
Somos um país pobre, com poucos recursos materiais;
Somos uma sociedade ainda muito dependente do Estado (porque este gera e obsessivamente alimenta na sua quase completa dependência), um país tristemente ofuscado na dependência que gera dependência;
Somos um país que apenas começou a submergir da ignorância e do obscurantismo cultural, que impregnou secularmente os tecidos sociais e culturais do poder e da submissão;
Somos um país pequeno, muito periférico e com muito pouca relevância no mercado mundial globalizada e financeiro;
Somos um país que realizou, no pós-25 de Abril, investimentos infraestruturais gigantescos e grande parte desnecessários, mas que aí estão;
Somos isto e muito mais: uma belíssima fatia de terra, banhada pelo sol e debruçada sobre o mar, uma cultura viva e encolhida na garganta de tantas vozes e no rumor de tantas súplicas, um espírito de grande abertura ao mundo, com firme vontade de partir, cais de partidas sem fim, um país que pode vir a ter um serviço nacional de saúde exemplar, que conta com um serviço de educação em franco progresso, que se orgulha de uma língua que as suas gentes espalharam pelo mundo, fazendo dele um mundo humanamente muito melhor, ...
Os portugueses, esta nova geração emigrante no seu próprio país, estão triplamente desenraizados: (i) diante da representação omnipresente de um passado heróico, em que fomos os maiores do mundo, está a realidade de um Portugal inscrito em várias listas negras, cheio de dívidas e a carregar "castigos" internacionais por se ter pedido mais do que podia pagar; (ii) diante de um Portugal fantástico, o dos últimos quarenta anos, onde o dinheiro não faltava, onde se fantasiou e se executaram incalculáveis devaneios, estádios que não servem para nada, auto-estradas onde quase ninguém circula e equipamentos públicos que servem para muito pouco; (iii) diante de um presente dramático, em que redescobrimos um Portugal impossível, seja porque é impossível regressar aos últimos quarenta anos, seja porque não se vislumbra ao que seja possível regressar ou quais sejam as vias para atualmente nos regenerarmos. Este é um momento de grande dor e sofrimento para a generalidade dos portugueses, porque estamos obrigados, num período curto, para lá do desemprego, da pobreza e da miséria, já de si dramáticos, a fazer um luto bastante pesado sobre o nosso próprio país.
Vagueamos, atordoados, no nosso próprio país, pisando a nossa própria terra: não percebemos a linguagem que agora enche o quotidiano, desconhecemos os hábitos e procedimentos que são agora recomendados, as palavras-chave mudaram de sentido ou são mesmo novas. Tudo isto é estranho, muito estranho, tão estranho que lhe somos estrangeiros: frugalidade, poupança, humildade, simplicidade, busca do essencial, "amor como critério de gestão", sustentabilidade, lentidão, silêncio,
E agora é preciso aprender quase tudo de novo. Sim, esse é o grande desafio e o grande problema. As questões de fundo prendem-se com a possibilidade de os portugueses, emigrantes na sua própria terra, serem capazes de fazer o luto deste passado e deste tipo de presente e de se envolverem na construção de um Portugal possível, ao alcance da nossa mão, por nós controlado, emanação da nossa cidadania e da nossa real participação social e política.
De outro modo, o vazio vai desgastar as energias sobrantes, o sem sentido vai preencher toda a sede de sentido, a errância vai ser o caminho quotidiano. E que mais deseja o estrangeiro em terra alheia? Inserir-se o melhor possível localmente, adoptando as mais variadas estratégias de sobrevivência, que passam tantas vezes por fechar-se numa concha e, logo que possível, regressar à sua terra, às suas raízes. Regresso que, neste caso, é uma impossibilidade real (pois ninguém [??] quer voltar a um passado que gerou um tão angustiante presente). Resta, pois, a revolta e a adopção individualizada de modelos de sobrevivência.
Por isso, é tão decisivo, porque profundamente arreigado na cultura comum, o momento que vivemos. Fazer o luto (o desmoronamento) de certos valores, hábitos, procedimentos, expectativas e desejos não vai ser fácil, mas pode resultar consideravelmente de uma imposição externa; encontrar e adoptar (a reconstrução) novos valores, hábitos, procedimentos, referências e expectativas, isso não se imporá de fora para dentro, mas só pode resultar de uma expiração, de dentro para fora, no que será igualmente uma autêntica expiação.
Num tempo destes, o mais fácil será fazer do populismo e da demagogia as principais forças motrizes de canalização, no espaço público, dessa revolta e dessa iminente impossibilidade de regresso. Agitar o vento, para pessoas sem raízes, é um meio eficaz de as levar atrás de qualquer coisa, com destaque para a corrida atrás tanto de um passado sempre possível de ser assinalado como espectacular, como de um futuro completamente utópico e perfeito. As pessoas estão a precisar, e depressa, de se agarrar a algo de muito concreto, por mais inverosímil que lhes pareça. Acreditar, confiar, ser parte.
Em alternativa, ou seja, a via crucis, implica sairmos de casa e irmos conversar construtivamente uns com os outros, o que não é nada fácil; implica esconjurar o medo pela via do diálogo, pela participação cívica e política, pela lenta e humilde edificação, com as nossas próprias mãos, de um futuro possível, devidamente por nós ponderado, capaz de integrar as várias gerações vivas; requer disponibilidade para acolher o outro, o diferente, e para a construção solidária de dias melhores, com compromissos locais muito concretos; implica tecer a filigrana da ligação, da entreajuda, da rede, da comunidade, para podermos alcançar em comum dias melhores; subentende a verdade, a esperança sustentada na verdade e o estabelecimento de novos horizontes, novas prioridades e metas, longe de qualquer fantasia, o que não é fácil, sobretudo porque os nossos actuais líderes estão porventura mais desenraizados ainda do que o comum dos cidadãos, pois vivem no mesmo mundo, com os mesmos problemas, com a diferença que são chamados a liderar o processo de regresso a um país desconhecido que, como nós, desconhecem, afastados de qualquer profunda e humana esperança.
Este é um tempo extraordinário, que já colocou em cima da mesa desafios extraordinários, que requerem ponderações e decisões extraordinárias. E o mais extraordinário é isto: cada um tem de mudar de vida! E isto não se passa na casa do vizinho, não dá para fazermos de conta, pois, cada uma e cada um, somos agora emigrantes na nossa própria terra. Queremos regressar a que futuro? Que valor queremos passar a gerar, em cima de que valores culturais sociais?
Uma coisa é certa: quem hoje semeia entre lágrimas, há de recolher as espigas por entre canções de alegria.
| JA