Gabriel Pacheco

Reencontrámo-nos nesta experiência salvífica de contacto com Jesus ressuscitado. Foi muito intensa a Páscoa: a desconcertante entrada em Jerusalém, a dificuldade de descansar o coração nessa Ceia em que se pressente a Paixão; a cruz que povoa o nosso imaginário, a morte, um certo sentido agónico da existência que a ressurreição de Cristo dissipa… mas a luz súbita da ressurreição não é uma evidência diante do sepulcro vazio.
É isso que nos narra o Evangelho de S. João: quando o medo aprisiona ainda os corações dos apóstolos, eis que escutamos: "A paz esteja convosco", dito isto, Jesus soprou sobre eles e disse-lhes: "Recebei o Espírito Santo." Lembro-me do Livro do Génesis, em que Deus formou o Homem do pó da terra e, com o sopro da vida, transformou-se num ser vivo, animado (com alma); do mesmo modo, Jesus, com o sopro de uma nova vida, transforma-nos num ser humano novo… no Cristo ressuscitado somos nova criatura, somos recriados, somos o Homem Novo.
A presença de Jesus neste contexto provoca alguma preplexidade, até alguma incredulidade no seio dos apóstolos. Evidente é a morte, não a ressurreição; e as narrativas evangélicas – 30, 40, 50 anos depois dos acontecimentos – não conseguem esconder um certo espanto de natureza poética. Continua a ser a poesia, como escreveu Ossip Mandelstam, "a charrua que opera sobre o tempo para fazer emergir o que, nele, repousa no profundo"; são assim os Evangelhos, narram os sulcos que, pacientemente, revolvem as devastações da terra em busca de um brilho, de uma razão, de uma palavra… ou transtornam as escuridões planetárias que nos habitam, na esperança de um não sei quê agitado de esplendor.
Curiosamente, os Evangelhos não se detêm na narrativa do contexto da ressurreição; religam a palavra ao silêncio, o visível ao invisível, por uma espécie de integridade inseparável que se descobre em nós e nas coisas, como pelo desencanto face ao inaceitável do mundo, face à repetição sonâmbula do mal, à violência desmedida da banalidade que contamina tudo, face à morte.
"Não está aqui, ressuscitou!" Um sepulcro vazio… Reencontramos Cristo em circunstâncias como a de hoje, não como uma assombração, mas com uma presença real e impressiva que assoma à narrativa a propósito da incredulidade de Tomé, sem perder a densidade simbólica, a sua verdade intrínseca, o diálogo, o gesto, o toque, o reconhecimento que assume as proporções de uma profissão de fé.
Habitamos, com efeito, um mundo largamente desdivinizado, reduzido nas suas acepções possíveis, “uma coisa sem transcendência”, como denunciou Ortega y Gasset, distraído que está da profundidade dos grandes símbolos, dos códigos matriciais das linguagens, enquanto dispersa a sua fortuna no raso comércio de sinais que se pretendem directos e imediatos, longe, muito longe, da preocupação pelo fulgor íntimo de um sentido, como escreveu José Tolentino Mendonça.
Habitar este mundo não só dificulta uma certa (e indispensável) capa-cidade de abstracção inerente às implicações conceptuais da ressurreição de Cristo, como fundamentalmente compromete a consciência de participação profunda na ressurreição de Cristo. E isso é o núcleo da nossa Fé e da nossa Esperança: com ele morremos para a morte que nos matava, com ele, nele e por ele ressuscitamos para uma vida nova.
O que é que nos move? O que nos move continua a ser, nas palavras de José Tolentino Mendonça, "uma qualquer compaixão pela vida, nua, pobre, passada, inocente, esquecida, sussurrante, amante, quase nada… Uma paixão que ordena o coração na procura disso que, numa novela de Henry James, se explicita assim: 'E a ti, o que é que te salva?'" É o amor de Deus plenamente realizado na ressurreição de Cristo que me salva. | José Rui Teixeira

Reencontrámo-nos nesta experiência salvífica de contacto com Jesus ressuscitado. Foi muito intensa a Páscoa: a desconcertante entrada em Jerusalém, a dificuldade de descansar o coração nessa Ceia em que se pressente a Paixão; a cruz que povoa o nosso imaginário, a morte, um certo sentido agónico da existência que a ressurreição de Cristo dissipa… mas a luz súbita da ressurreição não é uma evidência diante do sepulcro vazio.
É isso que nos narra o Evangelho de S. João: quando o medo aprisiona ainda os corações dos apóstolos, eis que escutamos: "A paz esteja convosco", dito isto, Jesus soprou sobre eles e disse-lhes: "Recebei o Espírito Santo." Lembro-me do Livro do Génesis, em que Deus formou o Homem do pó da terra e, com o sopro da vida, transformou-se num ser vivo, animado (com alma); do mesmo modo, Jesus, com o sopro de uma nova vida, transforma-nos num ser humano novo… no Cristo ressuscitado somos nova criatura, somos recriados, somos o Homem Novo.
A presença de Jesus neste contexto provoca alguma preplexidade, até alguma incredulidade no seio dos apóstolos. Evidente é a morte, não a ressurreição; e as narrativas evangélicas – 30, 40, 50 anos depois dos acontecimentos – não conseguem esconder um certo espanto de natureza poética. Continua a ser a poesia, como escreveu Ossip Mandelstam, "a charrua que opera sobre o tempo para fazer emergir o que, nele, repousa no profundo"; são assim os Evangelhos, narram os sulcos que, pacientemente, revolvem as devastações da terra em busca de um brilho, de uma razão, de uma palavra… ou transtornam as escuridões planetárias que nos habitam, na esperança de um não sei quê agitado de esplendor.
Curiosamente, os Evangelhos não se detêm na narrativa do contexto da ressurreição; religam a palavra ao silêncio, o visível ao invisível, por uma espécie de integridade inseparável que se descobre em nós e nas coisas, como pelo desencanto face ao inaceitável do mundo, face à repetição sonâmbula do mal, à violência desmedida da banalidade que contamina tudo, face à morte.
"Não está aqui, ressuscitou!" Um sepulcro vazio… Reencontramos Cristo em circunstâncias como a de hoje, não como uma assombração, mas com uma presença real e impressiva que assoma à narrativa a propósito da incredulidade de Tomé, sem perder a densidade simbólica, a sua verdade intrínseca, o diálogo, o gesto, o toque, o reconhecimento que assume as proporções de uma profissão de fé.
Habitamos, com efeito, um mundo largamente desdivinizado, reduzido nas suas acepções possíveis, “uma coisa sem transcendência”, como denunciou Ortega y Gasset, distraído que está da profundidade dos grandes símbolos, dos códigos matriciais das linguagens, enquanto dispersa a sua fortuna no raso comércio de sinais que se pretendem directos e imediatos, longe, muito longe, da preocupação pelo fulgor íntimo de um sentido, como escreveu José Tolentino Mendonça.
Habitar este mundo não só dificulta uma certa (e indispensável) capa-cidade de abstracção inerente às implicações conceptuais da ressurreição de Cristo, como fundamentalmente compromete a consciência de participação profunda na ressurreição de Cristo. E isso é o núcleo da nossa Fé e da nossa Esperança: com ele morremos para a morte que nos matava, com ele, nele e por ele ressuscitamos para uma vida nova.
O que é que nos move? O que nos move continua a ser, nas palavras de José Tolentino Mendonça, "uma qualquer compaixão pela vida, nua, pobre, passada, inocente, esquecida, sussurrante, amante, quase nada… Uma paixão que ordena o coração na procura disso que, numa novela de Henry James, se explicita assim: 'E a ti, o que é que te salva?'" É o amor de Deus plenamente realizado na ressurreição de Cristo que me salva. | José Rui Teixeira