
A arte como transfiguração, nestes dias últimos
Na condição de poeta, é-me pedida uma breve reflexão sobre a arte como transfiguração, nestes dias últimos. Penso no sentido que pode ter a expressão: a poesia como transfiguração, nestes dias últimos. Penso na verdade destes dias serem os últimos, enquanto presente e nos limites conceptuais da temporalidade. Antes ainda de reflectir sobre o sentido da arte e da poesia como processos de transfiguração, lembrei-me do breve ensaio de Heidegger, intitulado Para quê poetas?, provocação de Hölderlin, cem anos antes : "Para quê poetas em tempos de penúria?"
Trata-se do mesmo tempo, apesar das clivagens cronológicas… esses mesmos dias últimos. Trata-se do mesmo sentimento de ausência de Deus ou de impossibilidade de perceber a sua presença. Trata-se da mesma ferida ontológica, do mesmo sentimento de abandono de expressão existencialista, da mesma verdade que faz do poeta – do artista – esse primeiro Homem e o Homem último.
O nosso presente exige uma profunda reflexão sobre aquilo que seremos, sobre o futuro das nossas sociedades, se teremos capacidade de reinventar comunidades… E se o diagnóstico do presente é aqui desnecessário, na medida em que todos o testemunhamos em tempo real e vida concreta, a pergunta impõe-se novamente, com renovada assertividade: para quê poetas num tempo assim? Tempo de penúria? Sim, em tempo de penúria, ou de crise… este tempo em que tudo parece ser a medida de si mesmo, tempo de um autismo egótico e ególatra, como se o meu ensimesmamento me autojustificasse ou, pelo menos, me proporcionasse algum lenitivo auto comprazimento.
Para quê poetas num tempo assim? Tempo em que a entropia vai sendo a medida da desordem ou imprevisibilidade dos sistemas, das nossas próprias vidas… Tempo em que os dias são todos de morrer, expressão da caducidade do mundo, expressão da morte a que trescalam os nossos dias.
Servem para isso os poetas? Não, os poetas não servem para nada. Os poetas não são de servir, os poetas são de transfigurar. Transfigurar no sentido cristão de processo de configuração com Cristo, em ordem à transfiguração, adequação da minha figura à sua figura. Mas dizia: o poeta é de transfigurar, transfigurar no sentido de humanizar, no sentido de santificar. Lembro-me das palavras de Jaime Cortesão, em Portugal, a Terra e o Homem: "Depois atinge-se Amarante debruçada sobre o rio, vila antiga e solarenga dum santo e dum poeta, de São Gonçalo e de Teixeira de Pascoaes. Poetas como este, por vezes mais que os santos, santificam a vida." É isso…
É isso que move a mão do poeta, como nas palavras de José Tolentino Mendonça: "uma qualquer compaixão pela vida, nua, pobre, passada, inocente, esquecida, sussurrante, amante, quase nada. Uma paixão que ordena a mão na procura disso que, numa novela de Henry James, se explicita assim: 'E a ti, o que é que te salva?' Oh, os que não sabem que a mão escrevente é a mão que salva!"
Creio que essa é uma das respostas possíveis à pergunta de Hölderlin. Para quê poetas em tempos de penúria? Para transfigurar redimindo, para redimir transfigurando, para ser substantivamente e significativamente processo de humanização; para que a penúria seja menos penúria, para que a caducidade seja menos caducidade, para que a morte seja menos entrópica.
No colóquio 'Ver o invisível, dizer o indizível', organizado em Janeiro pelo Secretariado Diocesano da Pastoral da Cultura, no Auditório de Serralves, o poeta Valter Hugo Mãe falava de intensificar a vida, de pessoas que intensificam a vida… É isso: a arte e a poesia são de intensificar. Creio que é disso que carecemos nestes dias últimos.
José Rui Teixeira
II Encontro dos Artistas do Porto . 16 de fevereiro de 2012