2013-03-24

Domingo de Ramos

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Eis que celebramos o Domingo de Ramos. Quantas vezes já lemos ou escutámos a narrativa da Paixão? Poderíamos reproduzi-la de memória, como quem conta uma história, sem comprometer a sua inteligibilidade. E ainda assim, se a lemos ou escutamos com o sentido de quem se deixa transformar pela Palavra, é como se a lêssemos ou escutássemos pela primeira vez.
Por estes dias, celebramos a Páscoa. Não a celebramos como quem está saudosamente amarrado ao passado, nem como quem recalca memórias… Celebramos a Páscoa como quem presentifica a salvação. Trata-se de um paradoxo que só a fé resolve: presentificar a salvação implica que já tenhamos sido salvos; mas, se não a presentificamos, não seremos salvos. E como não seremos salvos se já fomos salvos? Com efeito, dizer que já fomos salvos, implica aceitarmos que estamos em processo de salvação, ou seja: que a salvação é, em termos escatológicos, esse "já agora" e "ainda não", algo que nos foi dado, mas que não é um dado adquirido; algo que nos foi dado para que o fizéssemos, para que o presentificássemos. Por isso somos peregrinos, estamos a caminho…
Este processo de salvação implica que queiramos ser salvos. E eu… quero ser salvo? O que é que em mim carece de salvação? A minha vida reflete essa necessidade de redenção? Percebo esse processo de redenção pessoal como processo de conversão?
Enquanto eu não for profundamente honesto e consequente com estas questões que coloco a mim próprio, dificilmente a minha vida representará esse caminho de configuração com Cristo, esse processo de conversão permanente, essa consciência de que estou a ser salvo. Podemos continuar a celebrar aqui ou noutro sítio qualquer, durante dez ou vinte anos, com mais ou menos sinais exteriores… mas tudo não passará de uma mão cheia de nada.

No fundo, é isso que representa a entrada de Jesus em Jerusalém. A decisão de celebrar a Páscoa com os discípulos em Jerusalém implica uma decisão: Jesus decide "subir" a Jerusalém. E a decisão implica uma encruzilhada: Jesus situa-se numa encruzilhada, que é mais do que a interseção de dois caminhos. Encruzilhada é a situação de um Homem sobre dois caminhos que se cruzam. É na encruzilhada que o Homem – o Filho do Homem – se interroga, uma última vez, sobre qual o caminho a seguir; é na encruzilhada que aparece o "diabo", enquanto metáfora daquilo que nos divide, que nos desassossega… é na encruzilhada que nos ocorre que pode ser outro o caminho. Mas Jesus endurece o rosto e "sobe" a Jerusalém. Jesus é consequente. Não era preciso ser o Filho de Deus para perceber a armadilha, a conspiração… bastava ser minimamente inteligente: naquele contexto, entrar em Jerusalém representava um caminho sem retorno.
Mas Jesus não é um suicida nem faz a apologia do martírio. Jesus é, simplesmente, consequente. Talvez por isso tenhamos tantas dificuldades em compreendê-lo. Fazemos uma expressão piedosa enquanto escutamos a narrativa da Paixão, mas não o compreendemos. Cristo é desconcertante, na medida em que nos desconcerta a sua alegria e simplicidade, a sua coragem e desassombro. Habituamo-nos a olhar Jesus em termos redutoramente estereotipados e, assim, nem sequer é necessário qualquer esforço no sentido de compreendê-lo.
Quando Jesus entra em Jerusalém, está em processo de conversão… também ele. Em processo de conversão e em processo de redenção. Soa a heresia, mas é ele que trilha o caminho da conversão e da redenção… por isso parte para o deserto, por isso endurece o rosto antes de "subir" para Jerusalém, por isso opta por entrar montado num jumento, numa espécie de desconstrução do estereótipo da entrada triunfante do "messias esperado": não é só o jumento, é a turbamulta, a populaça, são os murmuradores do costume. E ainda assim, o que ali acontece é estranhamente bonito, autêntico… Jesus põe-se à prova, desafia-se… decide. E decidir implica ser livre. E ser livre implica poder ter recusado entrar em Jerusalém. E se não tivesse entrado em Jerusalém, como poderia ter entrado na minha vida? E eu, na minha fragilidade, como poderia perceber que a minha vida faz sentido à luz da sua decisão?
Talvez eu não tenha percebido a necessidade do processo de conversão. Talvez não tenha percebido a necessidade do processo de redenção. É mesmo possível que eu não tenha percebido, simplesmente, a necessidade de salvação. Mas ainda tenho uma oportunidade: a oportunidade de perceber que quando Jesus decide livremente entrar em Jerusalém, é na minha vida que ele decide entrar… Resta saber se eu serei capaz de acolhê-lo. | José Rui Teixeira