2012-12-24

Natal, e não Dezembro


Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.


David Mourão-Ferreira

2012-12-23

O regresso a um país desconhecido

.
Talvez tenha chegado o momento de empreendermos um renovado e possivelmente longo processo de emigração. Desta vez, não já para o Brasil nem para França, mas para um novo destino, porventura bem mais longínquo e inacessível: Portugal.
De facto, o que hoje ocorre de mais significativo e profundo em Portugal – apesar de continuarmos envoltos no nevoeiro desta crise – é o choque da realidade, é a “descoberta” ou a “revelação” do país que estava simplesmente empurrado para debaixo do tapete. É como se a imagem impressa no papel branco de fotografia, invisível enquanto não mergulha no ácido, estivesse agora a surgir lentamente sob os nossos olhos espantados, no momento exatamente em que Portugal está a ficar submerso num líquido algo viscoso e corrosivo.
Mas, "depois deste curto intervalo", Portugal aí está de regresso:
Somos um país pobre, com poucos recursos materiais;
Somos uma sociedade ainda muito dependente do Estado (porque este gera e obsessivamente alimenta na sua quase completa dependência), um país tristemente ofuscado na dependência que gera dependência;
Somos um país que apenas começou a submergir da ignorância e do obscurantismo cultural, que impregnou secularmente os tecidos sociais e culturais do poder e da submissão;
Somos um país pequeno, muito periférico e com muito pouca relevância no mercado mundial globalizada e financeiro;
Somos um país que realizou, no pós-25 de Abril, investimentos infraestruturais gigantescos e grande parte desnecessários, mas que aí estão;
Somos isto e muito mais: uma belíssima fatia de terra, banhada pelo sol e debruçada sobre o mar, uma cultura viva e encolhida na garganta de tantas vozes e no rumor de tantas súplicas, um espírito de grande abertura ao mundo, com firme vontade de partir, cais de partidas sem fim, um país que pode vir a ter um serviço nacional de saúde exemplar, que conta com um serviço de educação em franco progresso, que se orgulha de uma língua que as suas gentes espalharam pelo mundo, fazendo dele um mundo humanamente muito melhor, ...
Os portugueses, esta nova geração emigrante no seu próprio país, estão triplamente desenraizados: (i) diante da representação omnipresente de um passado heróico, em que fomos os maiores do mundo, está a realidade de um Portugal inscrito em várias listas negras, cheio de dívidas e a carregar "castigos" internacionais por se ter pedido mais do que podia pagar; (ii) diante de um Portugal fantástico, o dos últimos quarenta anos, onde o dinheiro não faltava, onde se fantasiou e se executaram incalculáveis devaneios, estádios que não servem para nada, auto-estradas onde quase ninguém circula e equipamentos públicos que servem para muito pouco; (iii) diante de um presente dramático, em que redescobrimos um Portugal impossível, seja porque é impossível regressar aos últimos quarenta anos, seja porque não se vislumbra ao que seja possível regressar ou quais sejam as vias para atualmente nos regenerarmos. Este é um momento de grande dor e sofrimento para a generalidade dos portugueses, porque estamos obrigados, num período curto, para lá do desemprego, da pobreza e da miséria, já de si dramáticos, a fazer um luto bastante pesado sobre o nosso próprio país.
Vagueamos, atordoados, no nosso próprio país, pisando a nossa própria terra: não percebemos a linguagem que agora enche o quotidiano, desconhecemos os hábitos e procedimentos que são agora recomendados, as palavras-chave mudaram de sentido ou são mesmo novas. Tudo isto é estranho, muito estranho, tão estranho que lhe somos estrangeiros: frugalidade, poupança, humildade, simplicidade, busca do essencial, "amor como critério de gestão", sustentabilidade, lentidão, silêncio, E agora é preciso aprender quase tudo de novo. Sim, esse é o grande desafio e o grande problema. As questões de fundo prendem-se com a possibilidade de os portugueses, emigrantes na sua própria terra, serem capazes de fazer o luto deste passado e deste tipo de presente e de se envolverem na construção de um Portugal possível, ao alcance da nossa mão, por nós controlado, emanação da nossa cidadania e da nossa real participação social e política.
De outro modo, o vazio vai desgastar as energias sobrantes, o sem sentido vai preencher toda a sede de sentido, a errância vai ser o caminho quotidiano. E que mais deseja o estrangeiro em terra alheia? Inserir-se o melhor possível localmente, adoptando as mais variadas estratégias de sobrevivência, que passam tantas vezes por fechar-se numa concha e, logo que possível, regressar à sua terra, às suas raízes. Regresso que, neste caso, é uma impossibilidade real (pois ninguém [??] quer voltar a um passado que gerou um tão angustiante presente). Resta, pois, a revolta e a adopção individualizada de modelos de sobrevivência.
Por isso, é tão decisivo, porque profundamente arreigado na cultura comum, o momento que vivemos. Fazer o luto (o desmoronamento) de certos valores, hábitos, procedimentos, expectativas e desejos não vai ser fácil, mas pode resultar consideravelmente de uma imposição externa; encontrar e adoptar (a reconstrução) novos valores, hábitos, procedimentos, referências e expectativas, isso não se imporá de fora para dentro, mas só pode resultar de uma expiração, de dentro para fora, no que será igualmente uma autêntica expiação.
Num tempo destes, o mais fácil será fazer do populismo e da demagogia as principais forças motrizes de canalização, no espaço público, dessa revolta e dessa iminente impossibilidade de regresso. Agitar o vento, para pessoas sem raízes, é um meio eficaz de as levar atrás de qualquer coisa, com destaque para a corrida atrás tanto de um passado sempre possível de ser assinalado como espectacular, como de um futuro completamente utópico e perfeito. As pessoas estão a precisar, e depressa, de se agarrar a algo de muito concreto, por mais inverosímil que lhes pareça. Acreditar, confiar, ser parte.
Em alternativa, ou seja, a via crucis, implica sairmos de casa e irmos conversar construtivamente uns com os outros, o que não é nada fácil; implica esconjurar o medo pela via do diálogo, pela participação cívica e política, pela lenta e humilde edificação, com as nossas próprias mãos, de um futuro possível, devidamente por nós ponderado, capaz de integrar as várias gerações vivas; requer disponibilidade para acolher o outro, o diferente, e para a construção solidária de dias melhores, com compromissos locais muito concretos; implica tecer a filigrana da ligação, da entreajuda, da rede, da comunidade, para podermos alcançar em comum dias melhores; subentende a verdade, a esperança sustentada na verdade e o estabelecimento de novos horizontes, novas prioridades e metas, longe de qualquer fantasia, o que não é fácil, sobretudo porque os nossos actuais líderes estão porventura mais desenraizados ainda do que o comum dos cidadãos, pois vivem no mesmo mundo, com os mesmos problemas, com a diferença que são chamados a liderar o processo de regresso a um país desconhecido que, como nós, desconhecem, afastados de qualquer profunda e humana esperança.
Este é um tempo extraordinário, que já colocou em cima da mesa desafios extraordinários, que requerem ponderações e decisões extraordinárias. E o mais extraordinário é isto: cada um tem de mudar de vida! E isto não se passa na casa do vizinho, não dá para fazermos de conta, pois, cada uma e cada um, somos agora emigrantes na nossa própria terra. Queremos regressar a que futuro? Que valor queremos passar a gerar, em cima de que valores culturais sociais?
Uma coisa é certa: quem hoje semeia entre lágrimas, há de recolher as espigas por entre canções de alegria. | JA

2012-12-22

Feliz Natal ...

.
Georges de La Tour [1593-1652] . A Natividade [1645-1648]



Estamos na periferia do Natal. Somos na periferia do Natal. No início do Advento, escrevi que estamos [na condição de cristãos] em Advento… somos em Advento, somos Advento. Hoje sinto que estamos [que somos] na periferia do Natal de Cristo, estamos a ganhar proximidade, uma proximidade íntima com a memória do presépio e com a mais luminosa esperança, o coração da nossa esperança: a vinda de Cristo.
Não podemos entender este contexto [a própria orgânica do ano litúrgico] sem esta consciência de que fazemos memória ['fazemos' no sentido de 'celebramos'] enquanto 'guardamos o futuro'. E isso só é possível com a inteligência da Fé, com a ciência da Esperança, com a poética do Amor, porque o que vivemos, o que experimentamos, o que somos… é 'já agora' e 'ainda não'. Não se trata de uma espécie de esquizofrenia, nem desassossego existencialista ou inquietude pós-moderna… é Escatologia: a consciência histórica do passado é estrutural [o Caminho que percorremos], o futuro é a nossa vocação [já disse que a Igreja 'não tem' futuro… a Igreja 'é' o futuro], mas o presente é a nossa condição, o tempo da nossa santificação, um presente em sentido absoluto, aqui e agora.
Por isso, é verdade que carregamos as nossas angústias, os nossos medos, as nossas apreensões, os nossos desassossegos… afinal nada do que é humano nos é alheio. Mas é HOJE que eu colho a esperança que ontem semeei, é HOJE que semeio a esperança que amanhã colherei; é HOJE que eu sou, que me santifico e santifico o meu contexto existencial, é HOJE que me converto, é HOJE que digo o 'Pater' como se fosse a primeira vez, como se fosse a última vez, fundamentalmente como se fosse a única vez. Isto é tão fácil e eu bem sei que é difícil… tão fácil e tão difícil como o Sermão da Montanha, como o Evangelho… mas quem, entre nós, já desistiu do Evangelho? Quem, entre nós, já desistiu do Sermão da Montanha? Não basta ler [no caso de termos lido…], não basta compreender [no caso de termos compreendido…], é essencial viver, assumir no quotidiano, concretizar no dia-a-dia, experimentar nas relações, nas rotinas… Quem, entre nós, já desistiu de Cristo?

Dizia que o Natal implica uma proximidade íntima com o presépio. O que é que isso significa? Não somos saudosistas nem assumimos o ano litúrgico como uma espécie de eterno retorno do mesmo; por isso, o presépio não é para nós um motivo de comprazimento em torno de bonequinhos. O presépio e a proximidade íntima com o seu contexto evangélico, permite-nos [de um modo tão poético…] perceber a natureza impressiva e desconcertante do Amor de Deus; mas o segredo não está apenas no presépio… está na proximidade, esta na intimidade e está, fundamentalmente, no Amor de Deus.
Quando nos aproximamos intimamente do presépio, estamos a 'fazer memória', e estamos a 'guardar o futuro'… mas o segredo não se esconde nos verbos 'fazer' ou 'guardar', mas no presente do indicativo de 'estar': 'estamos'… Quando nos aproximamos intimamente do presépio, esquecemos o folclore, esquecemos os excessos desse natal que nos roubou o Natal, esquecemos o consumo, uma certa embriaguez ou loucura que só a crise [ou nem a crise…] consegue refrear. Quando nos aproximamos intimamente do presépio, percebemos que o natal não precisa da família [reunida]… a família é que precisa do Natal para ser Família. Quando nos aproximamos intimamente do presépio, percebemos como a palavra 'consoada' se tornou quase boçal… esse natal do bacalhau cozido e dos doces que nos adoçam a boca azeda, azedada pela 'religião dos mortos', pela desolação das nossas memórias, pelos nossos ressentimentos.

E se nos aproximarmos intimamente do presépio, pode ser que percebamos o Sermão da Montanha como a nossa Regra de Vida; pode ser que percebamos CRISTO como Cristo em nós e nós n’Ele, aqui e agora, tão intimamente próximos quanto nos permite o presépio. | JRT

2012-12-20

EIS O HOMEM 12/13

.
 

2012-12-12

Compaixão

.
© Omar Cleunam


Na História do rei transparente, de Rosa Montero, surge este diálogo comovente e profundo:

"- Continuas a escrever o teu livro de palavras?
A pergunta de Nyneve surpreende-me. Endireito-me e olho para ela. A minha amiga, que também está a trabalhar na horta, descansa apoiada na enxada.
- Sim, porquê?
- Porque te queria oferecer uma palavra. A melhor de todas.
- Ah, sim? Qual é?
- Compaixão. Que, como sabes, é a capacidade de nos colocarmos na pele do próximo e de com ele sentir o que ele sente.
- Sim, agrada-me. Mas porque é que me dizes que é a melhor?
- Porque é a única das grandes palavras em nome da qual não ferimos, não torturamos, não prendemos e não matamos... Pelo contrário, evita tudo isso. Há outras palavras muito belas: amor, liberdade, honra, justiça,... Mas todas elas, todas, podem ser manipuladas, podem ser utilizadas como armas de arremesso e causar vítimas. Por amor ao seu Deus, os cruzados acendem piras e, por um amor aberrante, os amantes ciumentos matam as suas amadas. Os nobres maltratam e abusam barbaramente dos seus servos em nome de uma hipotética honra; a liberdade de uns pode significar a prisão e morte para outros e, quanto à justiça, todos julgam tê-la do seu lado, mesmo os tiranos mais cruéis. Só a compaixão impede estes excessos; é uma ideia que não pode impor-se aos outros a ferro e fogo, porque nos obriga a fazer justamente o contrário. Obriga-nos a aproximarmo-nos dos outros, a sentir o que sentem e a compreendê-los…Lembra-te desta palavra, minha Leola. E, quando te lembrares, pensa também um pouco em mim."