2012-10-29

A vocação de ser pessoa

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Há uma reflexão que deveria ter sempre a precedência, tanto na formação dos jovens como na nossa vida em geral: o que é uma pessoa, o que é que nos faz ser pessoas, somos pessoas para quê? Vivemos num mundo em que é fácil sermos apanhados por modelos e modelados por fora, sem darmos por isso, por teorias e modas que nos impedem a liberdade individual e a manifestação de toda a nossa humanidade.
Confunde-se muito, nos dias de hoje, o ser pessoa com a consciência de si e com a manifestação das competências de cada um. A pessoa, retomando Levinàs e um texto de E. Housset [na 'Études' deste mês de Outubro, que recomendo e que aqui sigo], é uma resposta a um apelo; um apelo que vem constantemente dos outros e do mundo que nos rodeia. O que nos vertebrera como seres únicos é essa nossa capacidade única de responder a estes apelos ao longo de toda a vida, colocando-nos na posição de peregrinos: estamos sempre de partida, permanecemos toda a vida na ignorância acerca do nosso lugar, incapazes de tudo ligar e de tudo abarcar, para nos unificarmos. A nossa unidade só se pode ir encontrando lentamente nesta resposta que vamos dando aos apelos que nos surgem das mais variadas formas e nos mais diversos contextos, todos os dias da nossa vida.
A nossa liberdade é total, a missão de cada ser humano será sempre única.
A consciência do dever não provém sobretudo de uma consciência de si ou de uma representação de si, diz Housset, mas da escuta paciente do que acontece. Esta escuta dos apelos é sempre humilde e nela se manifestam tanto a nossa finitude e fragilidade, como a nossa graça. Quando olhamos para trás, para o caminho percorrido pela nossa vida, no rasto-testemunho que vamos deixando, vemos com facilidade o quanto a nossa vida se manifestou em concretizações e realizações que estiveram muito para além das representações que fomos fazendo de nós mesmos. A verdade da nossa vida não a produzimos nem nos pertence. Ela é construída nessa resposta à verdade do mundo e da realidade, de modo inesperado.
As múltiplas fantasias em que vivemos mergulhados, que nos trouxeram até esta crise, não são nada alheias a este conceito do que é ser pessoa. Idealizamos, fantasiamo-nos como heróis, super-ídolos, génios, grandes referências construídas de dentro para fora, do nosso perfil de competências para os outros e para a realidade. Nunca tanto se falou em competências e nunca nos sentimos tão incompetentes e impotentes.
Ora ser pessoa é decidir dar-se, "tornar-se pessoa consiste em aceitar ser testemunha, agindo e contemplando, renunciando à posição confortável de ser um simples espectador neutro do teatro do mundo". Por isso, ser pessoa é uma tarefa para humildes, prudentes e pacientes, porque só esse é o tempo de escutar e de discernir acerca das opções a realizar, num quadro de liberdade. O que nos convoca, na incerteza, é o que nos dá o nosso futuro, o futuro rosto humano de cada uma e de cada um.
A nossa esperança é estrangeira a toda a certeza e a toda a probabilidade, diz Housset. Somos verdadeiramente nós mesmos lá nos lugares e tempos em que nos esquecemos de nós mesmos e somos felizes a fazer os outros felizes. Somos frágeis, somos mortais, somos imperfeitos, mas é no escutar e responder aos apelos dos outros e do mundo que as nossas fraquezas se transformam em fortalezas, os nossos frágeis laços se tornam correntes de aço para a vida toda.
A nossa singularidade toma assim a significação positiva de uma vocação [Housset]. | Joaquim Azevedo

2012-10-26

Ia uma mulher com as duas filhas à minha frente, no passeio. As meninas teriam uns 8 e 5 anos. A mãe estava com pressa e ia à frente. As meninas iam atrás, a brincar, sem pressa nenhuma. A mãe estava irritada ou só desassossegada, ou só com pressa, e repreendia as filhas. Pensei que muitas vezes estou desassossegado, com pressa. Muitas vezes repreendo os meus filhos por não corresponderem ao meu desassossego e à minha pressa. Depois pensei que a minha mãe não me contaminou com pressa nem envenenou a minha infância com os seus desassossegos. A minha mãe encheu a minha infância de tempo, ensinou-me a esperar que o bolo cozesse no forno, que o chá de cidreira fervesse na chaleira. A minha mãe era forno e eu sou microondas. Depois pensei que se não tiver tempo, não posso abençoar com tempo a infância dos meus filhos. Depois pensei que a filha de uma amiga vive há alguns anos com um cancro agressivo e que, nessas circunstâncias, mesmo nestes tempos sem tempo, uma mãe não pode ter pressa, porque cada minuto é uma bênção incomensurável. E depois pensei que, por vezes, permitimos que certas escolhas e certos modos de vida nos desumanizem, permitimos que a pressa e o desassossego desfigurem a experiência humanizadora do tempo. | José Rui Teixeira

2012-10-24



Foi publicado por estes dias o primeiro livro da editora A ILHA: Mulheres de Armas [doze histórias sobre o sexo fraco]. Trata-se de uma antologia de histórias [de autores como Boccaccio, Taylor, Machado de Assis, Eça de Queirós, Arthur Conan Doyle, Raul Brandão ou Jose de la Cuadra], algumas delas inéditas em português, marcadas por personagens femininas insubmissas, de carácter por vezes sombrio. É um livro que nos convida a revisitar autores consagrados e a descobrir outros menos conhecidos.
:: www.facebook.com/ailha.editora

2012-10-22


 
 

Esta obra, coordenada por Anselmo Borges, traz a público um conjunto alargado de reflexões, partilhadas no Colóquio Quem foi (é) Jesus Cristo? [8 e 9 de Outubro de 2011]. Assinam esta obra não só, como é o caso de Isabel Allegro de Magalhães, mas também e principalmente teólogos de reconhecido prestígio e honestidade intelectual como Xabier Pikaza, Antonio Piñeiro, Juan Antonio Estrada, José Ignacio González-Faus, José María Castillo, Juan José Tamayo e Andrés Torres Queiruga.


[BORGES, Anselmo (Coord.), Quem foi/quem é Jesus Cristo, Lisboa: Gradiva, 2012 (ISBN: 978-989-616-505-5)]

2012-10-18

Salve-se quem puder e Ano da Fé

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Nestes tempos de crise, há muitos caminhos que nos são apontados e há mesmo vários que podem ser percorridos. Uns abrem o futuro à dignidade do ser humano, outros fecham-no. Nas crises, o caminho que mais facilmente se percorre e aquele para onde as pessoas e as instituições são encaminhadas é o de cada um procurar o seu próprio caminho. É o também chamado salve-se quem puder! Este é o caminho mais fácil, mas é também o que traz mais consequências negativas a médio e longo prazo. O cultivo da relação perde-se, bem como o sentido e a prática do ser comunidade. E nós não somos outra coisa que uma comunidade de origem, de percurso e de destino. Perder o sentido e a prática de comunidade e dos seus valores humanos centrais é perder o centro da nossa vida comum, deixar que muitos sejam excluídos do caminho apenas porque não têm emprego ou pão, significa abandonar o amor como critério de organização social e de vida, Dizem-nos que está tudo decidido, que não há escolhas a fazer. Pois nunca as escolhas foram tão necessárias e nunca estiveram tão escondidas debaixo de interesses, de inevitabilidades ou fatalismos. Outros já terão escolhido por nós e nada se poderá fazer. Quando a cultura se fecha assim é que é preciso ir ao fundo, rasgar o dado como certo e ao centro, este tempo de crise é o tempo da busca das interrogações centrais. O Ano da Fé não podia decorrer num tempo mais propício. As referências cristãs constituem um tesouro riquíssimo de que a humanidade precisa de sentir a pulsação, aqui e ali, em todo o lugar. É em direcção a essa fonte que temos de caminhar, antes que só haja mesmo um caminho de sentido único. E esse já não será o do amor. Nessa altura, será tarde e não ficará pedra sobre pedra. Temos de partir em comunidade, dando as mãos aos mais frágeis e perdidos, aos pobres e aos pequeninos, criando o novo e remendando o que ainda tiver conserto, não devemos levar peso na mochila e temos de transportar muita alegria no coração. São tempos muito duros estes e Deus aqui está, mais uma vez, ao nosso lado, a dizer: Eis-me aqui. | Joaquim Azevedo

2012-10-09



















O silêncio

segundo Angelus Silesius

Deus ultrapassa tudo
nada se pode dizer
A tua oração seja
a prece do silêncio

Cala-te, cala-te, dilecto
aprende ainda a calar
A prodigalidade de Deus
só a alcança
a prece do teu silêncio

Ninguém fala menos do que Deus
em nenhum tempo, em nenhum lugar
A Palavra que Deus pronuncia
é silêncio


«Estação Central», o novo livro de poesia de José Tolentino Mendonça, foi o livro do dia na TSF, escolhido por Carlos Vaz Marques: «O Livro do Dia» — TSF.

2012-10-05

ECCE HOMO