2012-04-14

Gabriel Pacheco



Reencontrámo-nos nesta experiência salvífica de contacto com Jesus ressuscitado. Foi muito intensa a Páscoa: a desconcertante entrada em Jerusalém, a dificuldade de descansar o coração nessa Ceia em que se pressente a Paixão; a cruz que povoa o nosso imaginário, a morte, um certo sentido agónico da existência que a ressurreição de Cristo dissipa… mas a luz súbita da ressurreição não é uma evidência diante do sepulcro vazio.
É isso que nos narra o Evangelho de S. João: quando o medo aprisiona ainda os corações dos apóstolos, eis que escutamos: "A paz esteja convosco", dito isto, Jesus soprou sobre eles e disse-lhes: "Recebei o Espírito Santo." Lembro-me do Livro do Génesis, em que Deus formou o Homem do pó da terra e, com o sopro da vida, transformou-se num ser vivo, animado (com alma); do mesmo modo, Jesus, com o sopro de uma nova vida, transforma-nos num ser humano novo… no Cristo ressuscitado somos nova criatura, somos recriados, somos o Homem Novo.
A presença de Jesus neste contexto provoca alguma preplexidade, até alguma incredulidade no seio dos apóstolos. Evidente é a morte, não a ressurreição; e as narrativas evangélicas – 30, 40, 50 anos depois dos acontecimentos – não conseguem esconder um certo espanto de natureza poética. Continua a ser a poesia, como escreveu Ossip Mandelstam, "a charrua que opera sobre o tempo para fazer emergir o que, nele, repousa no profundo"; são assim os Evangelhos, narram os sulcos que, pacientemente, revolvem as devastações da terra em busca de um brilho, de uma razão, de uma palavra… ou transtornam as escuridões planetárias que nos habitam, na esperança de um não sei quê agitado de esplendor.
Curiosamente, os Evangelhos não se detêm na narrativa do contexto da ressurreição; religam a palavra ao silêncio, o visível ao invisível, por uma espécie de integridade inseparável que se descobre em nós e nas coisas, como pelo desencanto face ao inaceitável do mundo, face à repetição sonâmbula do mal, à violência desmedida da banalidade que contamina tudo, face à morte.
"Não está aqui, ressuscitou!" Um sepulcro vazio… Reencontramos Cristo em circunstâncias como a de hoje, não como uma assombração, mas com uma presença real e impressiva que assoma à narrativa a propósito da incredulidade de Tomé, sem perder a densidade simbólica, a sua verdade intrínseca, o diálogo, o gesto, o toque, o reconhecimento que assume as proporções de uma profissão de fé.
Habitamos, com efeito, um mundo largamente desdivinizado, reduzido nas suas acepções possíveis, “uma coisa sem transcendência”, como denunciou Ortega y Gasset, distraído que está da profundidade dos grandes símbolos, dos códigos matriciais das linguagens, enquanto dispersa a sua fortuna no raso comércio de sinais que se pretendem directos e imediatos, longe, muito longe, da preocupação pelo fulgor íntimo de um sentido, como escreveu José Tolentino Mendonça.
Habitar este mundo não só dificulta uma certa (e indispensável) capa-cidade de abstracção inerente às implicações conceptuais da ressurreição de Cristo, como fundamentalmente compromete a consciência de participação profunda na ressurreição de Cristo. E isso é o núcleo da nossa Fé e da nossa Esperança: com ele morremos para a morte que nos matava, com ele, nele e por ele ressuscitamos para uma vida nova.
O que é que nos move? O que nos move continua a ser, nas palavras de José Tolentino Mendonça, "uma qualquer compaixão pela vida, nua, pobre, passada, inocente, esquecida, sussurrante, amante, quase nada… Uma paixão que ordena o coração na procura disso que, numa novela de Henry James, se explicita assim: 'E a ti, o que é que te salva?'" É o amor de Deus plenamente realizado na ressurreição de Cristo que me salva. | José Rui Teixeira

2012-04-10

© Omar Cleunam



A Economia Social e o reencontro do laço social

Esteve connosco, na Universidade Católica, a economista Elena Lasida, do Instituto Católico de Paris (Vice-Directora da FASSE). Deixo aqui uma brevíssima nota de uma reflexão que nos foi proposta, na senda do seu livro: Le goût de l'autre. La crise, une chace pour réinventer le lien. Albin Michel, 2011. É mesmo só para sinalizar, abrir o horizonte da curiosidade e convidar a conhecer mais.
Elena Lasida relembra que economia é relação e, na senda dos institucionalistas, vem propor uma leitura original, combinando a tradição cultural bíblica com uma reflexão actual sobre o mundo e a economia, o seu modo de regulação. Na sua óptica, a economia tem uma natureza essencialmente social, sustentada na relação humana. E é da sua natureza não ter que ser completamente subordinada à relação mercantil. Um exemplo: a aliança e o contrato. No contrato, procuramos acautelar os interesses de ambas as partes e proteger os nossos interessses face aos do outro e, em termos sociais, os contratos visam também proteger os mais débeis, pela via da lei e do Estado de Direito. A aliança vai mais longe e é mesmo de outra natureza. Deus fez uma aliança com o seu povo, por intermédio de Noé, depois do dilúvio. Deus fez uma promessa a Noé, no quadro de um compromisso unilateral, de nunca mais destruir a terra através de um dilúvio. Mas esta promessa muda o estatuto do homem diante de Deus: de ora em diante ele será tão responsável como Deus por esta terra, fazendo dela um local de vida e não de morte e corrupção. O homem é co-criador da vida. Renunciando Deus à violência, mostra um caminho novo ao homem. Ele mostra que se pode lutar contra o que destrói as relações com aquilo que as constrói. Pode-se combater o que divide através do que une, a morte através do que dá a vida. Entre dos modos de conter a violência e de pensar a criação, podemos seguir o modelo do contrato, que se baseia nas condições a respeitar e nas sanções em caso de incumprimento, e o da aliança, que apela a uma coresponsabilização na obra da criação.
A economia solidária está cheia de outras relações económicas que não as puramente fundadas neste modelo do contrato. No seu entender, há três tipos de deslizamentos e de fronteiras sobre as quais se deve trabalhar, hoje, unindo e não excluindo: uma que oscila entre a satisfação constante das "necessidades" e a procura de acesso aos bens, por um lado, e a cocriação, por outro. Esta fronteira deve abrir à manifestação das capacidades criativas de cada pessoa e à criação em conjunto dos mundos possíveis; outra que oscila entre a dimensão quantitavia e qualitativa da economia. Esta abre a possibilidade de valorização (dar valor) a actos sem equivalente monetário, a relação gratuita, a presença junto de alguém que sofre, o dom; a terceira é a que oscila entre uma lógica individual de consumo e de individualização social e de procura de independência e uma lógica de interdependência, de valorização da relação. Fronteiras a rever e a compreender.
Elena Lasida propõe uma aproximação antropológica à economia, na medida em que esta é relação e na relação, no diálogo e no encontro é que se faz a experiência da transcendência. Do que se trata, afinal, é de outro modo de pensar o desenvolvimento das sociedades, reservado para cada pessoa um lugar diferente, mais humano e mais digno. Por exemplo, diante das competências dos trabalhadores desempregados, opta-se quase sempre po ir à procura dos trabalhadores verificando se são capazes de responder às necessidades dos mercados de trabalho e o conjunto da sociedade pouco se perguntam sobre as competências de cada pessoa e sobre as suas possibilidades (e as nossas compossibilidades) para realizar actividades e trabalhos, com os quais se quer comprometer, certamente portadores de estilos de vida mais sóbrios e dignos e factores de maior realização humana.
São temas a aprofundar, certamente.
Mais um pontapé de saída, entre muitos dados (com Luigino Bruni) e a dar, para atribuirmos, na prática, outro valor à economia social e solidária no seio da Universidade Católica Portuguesa e da sociedade portuguesa, que dela tanto necessita. | Joaquim Azevedo