2012-03-10




A arte como transfiguração, nestes dias últimos

Na condição de poeta, é-me pedida uma breve reflexão sobre a arte como transfiguração, nestes dias últimos. Penso no sentido que pode ter a expressão: a poesia como transfiguração, nestes dias últimos. Penso na verdade destes dias serem os últimos, enquanto presente e nos limites conceptuais da temporalidade. Antes ainda de reflectir sobre o sentido da arte e da poesia como processos de transfiguração, lembrei-me do breve ensaio de Heidegger, intitulado Para quê poetas?, provocação de Hölderlin, cem anos antes : "Para quê poetas em tempos de penúria?"
Trata-se do mesmo tempo, apesar das clivagens cronológicas… esses mesmos dias últimos. Trata-se do mesmo sentimento de ausência de Deus ou de impossibilidade de perceber a sua presença. Trata-se da mesma ferida ontológica, do mesmo sentimento de abandono de expressão existencialista, da mesma verdade que faz do poeta – do artista – esse primeiro Homem e o Homem último.
O nosso presente exige uma profunda reflexão sobre aquilo que seremos, sobre o futuro das nossas sociedades, se teremos capacidade de reinventar comunidades… E se o diagnóstico do presente é aqui desnecessário, na medida em que todos o testemunhamos em tempo real e vida concreta, a pergunta impõe-se novamente, com renovada assertividade: para quê poetas num tempo assim? Tempo de penúria? Sim, em tempo de penúria, ou de crise… este tempo em que tudo parece ser a medida de si mesmo, tempo de um autismo egótico e ególatra, como se o meu ensimesmamento me autojustificasse ou, pelo menos, me proporcionasse algum lenitivo auto comprazimento.
Para quê poetas num tempo assim? Tempo em que a entropia vai sendo a medida da desordem ou imprevisibilidade dos sistemas, das nossas próprias vidas… Tempo em que os dias são todos de morrer, expressão da caducidade do mundo, expressão da morte a que trescalam os nossos dias.
Servem para isso os poetas? Não, os poetas não servem para nada. Os poetas não são de servir, os poetas são de transfigurar. Transfigurar no sentido cristão de processo de configuração com Cristo, em ordem à transfiguração, adequação da minha figura à sua figura. Mas dizia: o poeta é de transfigurar, transfigurar no sentido de humanizar, no sentido de santificar. Lembro-me das palavras de Jaime Cortesão, em Portugal, a Terra e o Homem: "Depois atinge-se Amarante debruçada sobre o rio, vila antiga e solarenga dum santo e dum poeta, de São Gonçalo e de Teixeira de Pascoaes. Poetas como este, por vezes mais que os santos, santificam a vida." É isso…
É isso que move a mão do poeta, como nas palavras de José Tolentino Mendonça: "uma qualquer compaixão pela vida, nua, pobre, passada, inocente, esquecida, sussurrante, amante, quase nada. Uma paixão que ordena a mão na procura disso que, numa novela de Henry James, se explicita assim: 'E a ti, o que é que te salva?' Oh, os que não sabem que a mão escrevente é a mão que salva!"
Creio que essa é uma das respostas possíveis à pergunta de Hölderlin. Para quê poetas em tempos de penúria? Para transfigurar redimindo, para redimir transfigurando, para ser substantivamente e significativamente processo de humanização; para que a penúria seja menos penúria, para que a caducidade seja menos caducidade, para que a morte seja menos entrópica.
No colóquio 'Ver o invisível, dizer o indizível', organizado em Janeiro pelo Secretariado Diocesano da Pastoral da Cultura, no Auditório de Serralves, o poeta Valter Hugo Mãe falava de intensificar a vida, de pessoas que intensificam a vida… É isso: a arte e a poesia são de intensificar. Creio que é disso que carecemos nestes dias últimos.

José Rui Teixeira
II Encontro dos Artistas do Porto . 16 de fevereiro de 2012

2012-03-01

A arte como transfiguração, nestes dias últimos.

Dizem-me que escrevi para este encontro dos artistas uma mensagem muito esmagadora, muito negativa. Não concordo e vou tentar explicar melhor porquê. Reafirmo: quem nos dera que estes conturbados tempos que vivemos fossem os últimos para a desgraça que percorre o mundo e corrompe a vida: a exploração de uns humanos por outros humanos, a escandalosa concentração da riqueza nas mãos de uns poucos, que a usam para gerar a insegurança e pobreza de tantos, a finançiarização das relações económicas, que bem podiam ser relações de encontro, o lucro como o supremo critério das relações económicas, a delapidação dos recursos naturais, o individualismo agigantado que redundou em isolamento e fragmentação social, porque prescindiu do outro… traços, entre muitos outros, da desfiguração do verdadeiramente humano.
Quem nos dera que estes fossem tempos últimos, de passagem, de transfiguração desta desfiguração em que caímos, e que bom seria que o mundo ficasse um lugar um pouco melhor para nele todos podermos viver em paz.
O que tem a arte a ver com isto? Tudo.
Primeiro (talvez um pouco ilusoriamente?), quando falo de arte falo de um mundo dominado pelo gratuito, não sujeito às regras da competitividade que nos dizem serem as regras do nosso quotidiano, as tais para as quais, dizem e repetem, nos teremos de preparar. Um mundo que nos revela o que de mais sublime há em nós: os traços da nossa humanidade, que descrevem e desenham cada ser humano de modo único. E a revelação dessa humanidade torna-nos mais humanos, interroga o sentido da nossa vida, faz-nos mais próximos, relaciona-nos como somos, torna-nos mais sensíveis, eleva-nos.
Segundo, porque a arte é, a um tempo, figuração e transfiguração: evoca o encontro pessoal do artista com o mistério do mundo e gera em nós um encontro pessoal com esse mesmo mistério, encontro este que é sempre um apelo, o início de uma nova leitura, porventura até de um incontido fascínio. Quando um pintor trabalha uma tela ou um escultor um pedaço de ferro ou quando um escritor ronda uma palavra, cria no dito e no não dito, coloca-nos diante da eternidade no tempo, diante do mistério de onde a obra de arte emergiu. Participamos do mistério da criação, aproximamo-nos um pouco mais do invisível, do insensível e do indizível. Há obras de arte que perduram no tempo, fornecendo-nos milhões e milhões de leituras humanas, as dos olhos de cada um, a partir de uma exposição a esse mistério que habita o dito, a obra, o feito.
O artista é um trabalhador que labora em silêncio, as mais das vezes longe do convívio e do bulício do quotidiano, é um artífice que humildemente nos fala daqueles mistérios, trazendo-nos diante dos olhos o que no dia-a-dia ainda não fomos capazes de ver, nem de ouvir, nem de pronunciar, nem de sentir. A transfiguração está na raiz da criação artística porquanto esta é respiração, uma outra janela aberta sobre o mundo e a vida, o quotidiano e o tempo.
O artista é, assim, participante do mistério da criação, é cocriador do mundo e da vida, figurando-os e transfigurando-os, e desse modo, além de expressar o que percorre o seu íntimo, os traços do seu rio interior, lança convites a todos os outros homens a serem também cocriadores do mundo e da vida, desenhando-os, cada um no seu melhor modo, convites estes que nos incitam a irmos em busca do essencial.
Haverá ou não uma urgência em tocar a verdade? Haverá ou não tempo para os artistas revelarem hoje uma outra figuração (que também pode ser uma desfiguração) que não apenas a que vemos na técnica e na reconstrução plástica, mas também a que vemos na relação e na figuração humana, sobretudo dos que mais sofrem? O que é que de eternidade se exprime na voragem da realidade dos dias? Hoje, não há mesmo lugar para a eternidade? Os artistas desistiram de nos revelar o desconhecido e o mistério do mundo e da vida? Pretendeu-se arrumar com Deus da nossa cultura, agora estamos também a arrumar o homem para o seu canto. Por isso, esta crise é bem maior e mais grave nos dias que correm, pois só o amor entre os homens os pode salvar e fazê-los chegar à sua plenitude, ao seu cabal cumprimento como seres humanos, cada um a seu modo.
A arte, nestes dias últimos, é um caminho. Para onde? Para quê? Para que tudo recue e se rigidifique, assim como está, ou, pelo contrário, para que se derrube este tempo fechado no ensimesmamento e na guerra e se abra outro tempo, de relação e de beleza, essa que não é necessariamente bonita, mas que é "o esplendor da verdade". A arte cria e recria, corta e dilacera, destrói e reconstrói, figura e desfigura, abre os olhos e os sentidos para outras palavras, outros gestos e outros sentidos. É urgente falarmos do que não vemos quando olhamos e fazer disso a motivação e o alicerce de uma outra relação. Re-ligar é uma tarefa urgente deste tempo. O artista é um pontífice entre este tempo e a eternidade do AMOR, tornando-a presente e dando-nos esse presente, um pontífice entre este nosso presente e o insondável desse Amor Pleno. O artista abre-nos a janela, dá-nos o oxigénio: os nossos olhos quase que veem o que não se pode ver, os nossos lábios tocam a brasa a arder e os nossos dedos comovem-se até ficarmos sem saber onde colocar as mãos!
O Cardeal Barbarin diz que somos convidados a pensar na atitude de Maria, Mãe de Jesus, que diante do aparente fracasso do seu Filho, diante do seu corpo desfigurado pela crueldade humana, fica de pé junto à cruz e O olha. Ela olha o que parece ser aos olhos de todos um fracasso, uma obra deteriorada, dececionante. Ela não aprova esta obra da morte, mas assume-a, o que constitui o primeiro passo para a sua redenção. Ela fica ali, ao pé da cruz do assassinado, porque a habita uma profunda esperança, uma esperança mais forte que a morte.
Tão ou mais grave do que pensarmos viver sem Deus, é vivermos sem mundo, sem pessoas concretas, sem história, sem política, sem nada por diante, sem futuro que não seja um fim, uma técnica, um gadget, mais ou menos imediato, o cumprimento imediato de um Acordo de Empréstimo de uns dinheiros. Esse não é o nosso horizonte. Este não pode ser o nosso horizonte, porque está fechado sobre si mesmo, mete um povo dentro de um quarto com portas e janelas, mas diz-lhe que as portas e as janelas não funcionam, estão fechadas, que não vale a pena pensarmos mais nisso. Pois, meus caros amigos, é mesmo nisso que temos de pensar!
Baudelaire dizia aos burgueses do seu tempo, em 1846: "podeis viver três dias sem pão; sem poesia, jamais; e os que de entre vós dizem o contrário, enganam-se: (e acrescentava) eles não se conhecem."
Somos como o primeiro homem, vivemos dentro da mesma obscuridade e dos mesmos raios de luz, ou melhor dentro do mesmo mistério, por entre os evoluções técnicas, que nos permitem afirmar um progresso, um tempo que apresentamos como novo. Mas a arte não fala deste tempo, pode servir-se desses materiais, mas deve falar do intemporal. Essa é a arte que serve o homem e de que o homem se serve sem nunca a desgastar.
Obrigado por estarem aqui, neste nosso segundo encontro. Lentamente, passo a passo, vamos estabelecendo novas relações e vamos dizendo uns aos outros que afinal as portas e as janelas se podem abrir e como. E como é que é? É assim, deste jeito!

Joaquim Azevedo
II Encontro dos Artistas do Porto . 16 de fevereiro de 2012